O lema na nossa bandeira, “ordem e progresso”, é a antítese da realidade atual: desordem generalizada e assimilada no cotidiano, do delito trivial à violência criminosa, às invasões e depredações pretendidas como manifestações sociais e democráticas, à corrupção epidêmica. E estagnação da economia, se não recuo, evidente na queda de mais de 2% do produto interno bruto (PIB) em 2015, com inflação renitente, retração no investimento, no emprego e no consumo, queda da confiança no país e juros surrealistas: há no mundo outro caso de 400% ao ano no cartão de crédito?
[su_quote]O “clima” dominante hoje não inspira esperança de que a mudança simultaneamente radical e democrática venha a prevalecer[/su_quote]
União, Estados e municípios se veem sufocados por despesas compulsórias (em realce, o pessoal ativo e inativo) e pela Lei de Responsabilidade Fiscal, que deixam pouca margem para governar (e induzem artifícios ilegais para camuflar o déficit – as pedaladas…). Ademais, Estados e municípios se veem cerceados pela ordem federativa fiscal que os faz autônomos dependentes (?) do governo federal.
No social: risco de insustentabilidade da Previdência, caos no sistema público de saúde, educação em descompasso com o mundo moderno e urbanização (com seus corolários: habitação, transporte e esgoto sanitário) desordenada. A mídia – mais a TV – pouco contribui para elevar o nível cultural do povo, quando não o mediocriza, com programação vulgar e/ou sensacionalista circense.
Na política externa: embora consciente da conveniência do bom relacionamento econômico com os países ricos, o Brasil compromete-se com o neoterceiro-mundismo em moda na América do Sul, que o faz comparsa do anti-imperialismo bolivariano. Sujeitamos o pragmatismo progressista à ideologia paralisante, enterramos a promissora Alca a título de rejeição do imperialismo norte-americano (na contramão do recente Acordo do Pacífico, a que aderiram México, Peru e Chile) e mantemos o Mercosul inibidor do nosso comércio com o mundo rico.
Acrescentem-se a essas mazelas as greves no serviço público, que usam o povo como refém, a despeito da situação do servidor público no cenário do trabalho brasileiro: estabilidade, previdência distinta (cuja correção vai demorar a ter efeito) e perfil salarial que, embora com injustiças (professores, médicos do SUS…), é razoável e até “generoso” (?) para algumas categorias.
Por que esse quadro de país doente?
A influência socioeconômica e cultural negativa, herdada do passado, ainda é forte hoje. Tentativas de minorá-la, episódicas e parciais, têm sofrido resistência menos por convicção racional e mais por acomodação, conformada ou conveniente, na realidade viciada. Fatos e práticas de anos recentes não têm ajudado a superar o quadro, ao contrário: eles o estão agravando, o Brasil vê-se hoje em risco de passar do sinal amarelo ao vermelho, do perigo ao desastre.
Para resolver seus problemas e exercer a presença internacional a que faz jus o País precisa reformar sua sistemática política, procurando induzir qualidade e cerceando a avidez inspirada no uso patrimonialista do poder. Precisa modernizar seu sistema educacional e ajustar suas instituições de apoio social (SUS, previdência, CLT…) à realidade. Precisa redesenhar a ordem federativa, compatibilizando encargos e suficiência fiscal. E precisa reestruturar a máquina pública sobre o mérito – tema que inclui a revisão disciplinadora do comissionamento, hoje pautado por fisiologismo e clientelismo. Outras reformas virão naturalmente a reboque; inclui-se nesse processo o enxugamento do Estado Leviatã – grande, caro e venal na proporção de seu tamanho, mas de desempenho insatisfatório.
As dimensões dessa evolução complexa sugerem ao país uma versão democrática ajustada às circunstâncias psicossociais e geoeconômicas brasileiras da Revolução Meiji, que nos anos 1860 e subsequentes liberou o Japão dos entraves ao desenvolvimento moderno, inerentes à tradição do xogunato semifeudal, fazendo-o emergir em poucas décadas do marasmo medieval e isolamento internacional ao nível de grande potência regional e até global, sem mutilar valores ancestrais não impeditivos da reforma – embora a educação modernizante tenha sido fundamental no processo!
Para isso se faz necessária uma condução nacional legitimada pela retidão, pelo nível cultural e pela competência, capaz de identificar os macro-objetivos nacionais presentes e futuros e de hierarquizá-los acima da conjuntura política de interesse imediato, sem concessões à política fisiológica, clientelista e patrimonialista, sem concessões às fantasias ideológicas, quando não apenas demagógicas, incoerentes com nossa realidade e a realidade do Brasil no mundo.
Em suma e reiterando, por ser quesito indispensável: a viabilidade do ideário redentorista pressupõe o destaque na política brasileira de atores/estadistas que realizem nossa Revolução Meiji tropical e democrática com competência e com o altruísmo necessário para adotar medidas indutoras de crédito na projeção histórica, mas de algum risco eleitoral no curto prazo. Atores/estadistas que resgatem a política de vícios como os que foram expostos recentemente na montagem fisiológica do governo e vêm transparecendo na resistência ideológica ou demagógica, quando não por mero interesse econômico, a medidas de restauração da saúde fiscal, sem a apresentação de alternativas sensatas.
E finalizando: precisamos que toda essa evolução ocorra na moldura democrática, sem traumas ou arroubos de salvacionismo autoritário e sem pretender mudar aspectos de nossa cultura popular tradicional que não comprometam o processo – ainda que os ajustando ao mundo moderno, como aconteceu no Japão.
O “clima” dominante hoje não inspira esperança de que a mudança simultaneamente radical e democrática venha a prevalecer, no curto prazo, sobre o “como está, está bom…”. Ela é possível, mas depende das urnas – uma dependência preocupante no cenário brasileiro hoje.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 28/10/2015.
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