Tenho 57 anos. Confesso o sentimento de fracasso com que chego a esta idade. Não no sentido pessoal, uma vez que, ao fazer um balanço, reconheço que a vida foi muito generosa comigo, dando-me saúde, uma boa família, bons amigos e boas condições de vida. Minha frustração é pelo Brasil.
Recentemente estive na Comissão Especial da Reforma Previdenciária, à qual fui convidado a participar de uma das suas seções. Ali tive a oportunidade de compartilhar algumas das questões que trato aqui. Meu primeiro artigo sobre previdência é de 1993, abordando questões atuariais. Cinco anos depois comecei a escrever sobre o crescimento acelerado das despesas previdenciárias sob a ótica fiscal. Desde então publiquei quase uma dezena de artigos acadêmicos sobre o tema em revistas especializadas, além de ter escrito ou coorganizado quatro livros sobre o tema e publicado dezenas e dezenas de artigos jornalísticos sobre o assunto durante anos e anos. No prefácio de um desses livros, Sonia Racy escreveu que “o próximo Presidente da República dificilmente poderá empurrar a problemática com a barriga, como vem se fazendo há anos… O papel aceita tudo, mas a realidade um dia chega”.
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Essas palavras foram escritas em 2006 e refletiam uma situação em que o Brasil já estava atrasado na matéria pelo menos uma década em relação ao que deveria ter sido feito. Infelizmente, Sônia estava errada: mais 12 anos se passaram e continuamos sem fazer grandes reformas no sistema. A problemática foi empurrada com a barriga até agora. Para quê? Para chegarmos a um País que estimula a saída precoce dos indivíduos, onde quem se aposenta por tempo de contribuição pode fazê-lo muito cedo – e onde a qualidade das políticas públicas de saúde, de educação e de segurança, para citar as que mais afetam a vida do cidadão comum, dispensa comentários.
É impossível olhar para trás e não associar à situação do País à frustração pessoal – e provavelmente também à de colegas como Paulo Tafner, Leonardo Rolim, Marcelo Caetano, José Cechin, Hélio Zylberstajn, Luis Afonso, Francisco Oliveira, Kaizô Beltrão, José Márcio Camargo e outros que defenderam a realização de uma reforma previdenciária, passando alguns o bastão para outros, ao longo desses anos todos – em não termos sido bem-sucedidos no convencimento dos agentes políticos. Para a geração a que eu pertenço (ali pelos 55 a 60 anos) e que tinha em torno de 20 anos quando os sonhos da juventude coincidiram no tempo com a redemocratização do Brasil, o País fracassou. Tivemos avanços importantes – no combate à miséria extrema e na estabilização dos preços –, mas o contraste entre o que poderíamos ser e o que somos é enorme.
A Lei Orgânica da Assistência Social de 1960 exigia uma idade mínima de 55 anos para a pessoa se aposentar. Essa exigência não foi acolhida na Constituição de 1988. Cinco anos depois, em 1993, com sua ironia habitual, Roberto Campos afirmava que, “com a aposentadoria por tempo de serviço e os privilégios da aposentadoria precoce, mais da metade dos aposentados está na faixa dos 50 anos. A imagem do aposentado como um velhinho simpático, trôpego e quase gagá como eu, esperando na fila, falseia a realidade. Há atléticos latagões e simpáticas balzaquianas gozando às vezes de aposentadorias múltiplas”. Mais de 25 anos depois desse comentário de Roberto Campos, a situação legal é muito parecida – noves fora pequenas modificações –, com a agravante de que a conta previdenciária é várias vezes maior. Para que o leitor tenha uma ideia de como o Brasil tem sido de uma imprevidência aberrante – não me ocorre outra palavra – no trato da questão, cabe ressaltar que a própria Lei Eloy Chaves, de 1923 – a “lei mãe” da Previdência no Brasil –, estabelecia uma idade mínima de 50 anos de idade para a pessoa poder se aposentar. Hoje, quase cem anos depois e com uma expectativa de vida muito maior, 29% das aposentadorias femininas por tempo de contribuição são concedidas até os 50 anos de idade. O Brasil assassinou o seu futuro.
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Em maio de 1998, uma proposta de emenda constitucional (PEC) estabelecendo limites mínimos de idade para a aposentadoria (60 anos para os homens e 55 para a mulheres) obteve apenas 307 votos na votação de um destaque para votação em separado, deixando assim, por um voto, de ser aprovada na Câmara de Deputados, três anos depois de ter sido apresentada. Na ocasião, um dos líderes do governo sentenciou: “A reforma da Previdência acabou”. No dia 17 de maio de 2017 alguém poderia ter dito a mesma coisa quando da divulgação dos famigerados “áudios do Joesley”. A falta do sentimento de urgência do País diante de um dos seus maiores desafios, ao longo de todo esse período, constitui um case de irresponsabilidade coletiva.
A reforma previdenciária precisa ser aprovada. Seu único problema é vir com mais de 20 anos de atraso. Na apresentação feita na Comissão Especial da Reforma da Previdência tive a oportunidade de expor alguns slides com o contraste entre “antes” e “depois” de alguns lugares como Xangai ou Cingapura, mostrando fotografias de como eram nos anos 1990 e no que se transformaram atualmente. Diante disso, assistir à disputa de algumas categorias para tentar “pegar uma carona” nas “regras especiais” de aposentadoria da PEC da Previdência só pode levar o analista a verter o que Nelson Rodrigues denominava de “lágrimas de esguicho”: a sensação de termos perdido o “bonde da História” não poderia ser mais palpável. Enquanto o mundo discute inteligência artificial, Big Data, indústria 4.0, robótica de alta precisão, etc., e procura avaliar qual a melhor forma de o ambiente institucional estimular o progresso, nós, aqui, ficamos lutando para ver que grupo pode aposentar-se com 55 anos, recebendo seus benefícios de um Estado exaurido. É de doer.
Fonte: “Estadão”, 03/07/2019