Raramente escrevo sobre esporte. Lembro-me de ter escrito um artigo comparando o Flamengo e o Brasil.
Dizia na época que ambos eram meio caóticos e não cumpriam a promessa de grandeza, apesar de todo o potencial.
Pois bem, o Flamengo deu a volta por cima. O ensinamento dessa virada não deveria, creio eu, limitar-se a um aprendizado apenas no futebol.
O Flamengo começou por ajustar suas finanças, o que lhe deu condições de montar uma infra melhor e investir em grandes nomes.
A chegada do técnico Jorge Jesus foi resultado dessa capacidade de investir. Sua filosofia de trabalho acabou dando um sentido maior a todo o esforço.
O futebol brasileiro parecia entediante perto do europeu, jogado com intensidade do princípio ao fim da partida.
Jesus quer que o time siga atacando até o final, independentemente de estar vencendo com folga. Não era essa a atitude frequente. De um modo geral, os times faziam um, dois gols e tentavam administrar o resultado, ganhando tempo. Com isso, o espetáculo acabava antes do fim regulamentar.
Imagine se um espírito de trabalhar com eficácia todo o tempo fosse transportado para a máquina do governo. Nada se parece mais com o futebol brasileiro do que a burocracia. Muitas jogadas laterais, falta de objetividade, o tempo sentido como a algo a se matar e não uma oportunidade de fazer cada vez melhor.
Outro aspecto da filosofia de trabalho de Jesus é impulsionar os limites, algo que existe também no esporte de ponta. Havia um tabu segundo o qual um time que joga na quarta descansa no domingo, ou vice-versa, dando lugar aos reservas.
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Por que não jogar duas partidas por semana, com as técnicas de recuperação que existem? Todos temiam o fracasso do Flamengo pela exaustão. E os jogadores seguiram correndo até o final de todas as partidas.
Imagine essa ideia transportada para um Congresso com gana de trabalhar todo o tempo, sem grandes hiatos entre um e outro projeto relevante.
O potencial do Flamengo estava na sua grande torcida. Na medida em que o time parecia jogar com seriedade, os espectadores aumentaram. O investimento foi alto, mas o retorno maior ainda da torcida.
Se ampliamos a ideia para um país, vamos compreender um pouco por que os estádios da política andam vazios. O investimento bem aplicado chega na ponta e a resposta das pessoas impulsiona mais ainda.
No caso do derramamento de óleo na costa do Nordeste, esse potencial é visível. Enquanto o governo acusa o Greenpeace, centenas de voluntários enchem as praias retirando o óleo, inclusive sem equipamento adequado.
Certos bons jogadores do Flamengo, no passado, não eram escalados sob o argumento de que ocupavam o mesmo espaço no campo. Jesus trouxe a ideia do movimento e flexibilidade e com ela a chance de usar o melhor elenco possível.
Um pequeno preconceito tático impedia a busca do melhor elenco. Se olhamos para a política então os preconceitos se multiplicam. Há centenas de argumentos para impedir que os melhores atuem em conjunto em busca do melhor resultado.
Desde a guerra dos egos ao sectarismo ideológico, tudo conspira contra a escalação de um time dos sonhos para buscar uma sucessão de vitórias.
Não sou ingênuo a ponto de supor que um país seja simples como um jogo de futebol. Para começar o esporte tem regras definidas, o campo da política é mais fluido, as próprias regras estão em constante debate.
Mas não é de todo impossível encontrar países, em certos momentos históricos, onde há um grande esforço no sentido de avançar, romper obstáculos.
De qualquer forma, Flamengo e Brasil eram para mim promessas não cumpridas. Ficou faltando o Brasil. Não se sabe ainda quando vai parar de jogar para o lado, perder seus preconceitos, unir talentos, enfim deixar de apenas ser um sonho para o futuro.
Imersos no torpor dos trópicos, às vezes precisamos de gente de fora para enxergar o óbvio e, realmente, começar a jogar.
Fonte: “O Globo”, 28/10/2019