Vivemos tempos de Hurricane, Escambo e Monte Carlo. Tais são as operações da Polícia Federal que prenderam contraventores ou “bicheiros” – como Carlinhos Cachoeira, Aniz Abrahão David, Ailton Guimarães, Turcão, Luiz Pacheco Drumond e Piruinha. Alguns são celebridades, patrocinadores do Carnaval carioca e amigos de senadores. Todos são acusados de praticar atividades ilegais – entre elas, figura o brasileiríssimo jogo do bicho.
A caçada aos banqueiros do bicho, um jogo que só existe no Brasil, levanta problemas curiosos. O primeiro é o jogo como uma atividade problemática no mundo capitalista e pós-industrial. O capitalismo é um sistema produtivo (e existencial) que tem como base a liberdade individual, e como núcleo o capital financeiro – e não mais fábricas infectas, os moinhos satânicos de que falava o poeta inglês William Blake. Realmente, o capitalismo atual chama a atenção principalmente pelos computadores superpoderosos, nos quais podemos nos tornar atores num teatro chamado de “Bolsa de Valores”. No capitalismo, arriscamos, apostamos e investimos. Mas, nesse caso, trata-se de um risco legitimado pelo sistema, já que seu fundamento é a alavancagem de recursos que, até a famosa bolha americana, permite avaliar as empresas que estão no mercado. Um cínico diria que o mercado é a mesa do cassino, e a Bolsa sua roleta. Um sujeito razoável afirmaria que jogar na Bolsa é uma consequência da expansão do mundo financeiro e do triunfo do capital – que reinventa, a seu modo, nossas identidades locais, nacionais e globais.
Não é muito fácil distinguir esses tipos de “jogo” – o que é ilegal, como o bicho, e o que é institucionalizado, como a Bolsa – da mesma forma como não é tranquilo aceitar o álcool e o fumo, proibindo outras drogas. Sobretudo quando se sabe que tudo – literalmente tudo (computadores, jogos, livros, sexualidade, futebol, comércio, sorvete, automóveis, regimes alimentares, remédios, chocolate, comida etc.) – “vicia”. Ou seja: pode causar dependência.
Deixando de lado nossas vãs filosofias e reiterando que não se trata de defender contraventores, sabemos que se joga na Bolsa como se pode jogar nos cassinos. A diferença crucial é que o jogo é proibido no Brasil. Ele foi colocado na ilegalidade em 1946 pelo Decreto no 6.259, assinado pelo então presidente e general, Eurico Gaspar Dutra. Uma lei que, pelo número, os aficionados do jogo do bicho sabiam pertencer ao grupo do jacaré. Ora, o jacaré é um bicho traiçoeiro, de modo que o decreto confirmou o caráter da lei dentro de uma cosmologia popular, que o próprio jogo do bicho estabeleceu.
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Quando, com Elena Soárez, escrevi um livro sobre o jogo do bicho, escolhemos o título Águias, burros e borboletas, porque esses “bichos” remetiam à dimensão poética de toda instituição verdadeiramente popular. Eram da ordem daqueles “brasileirismos”, como dizia Gilberto Freyre, que ajudam a construir a identidade de um povo. Essa identidade permite uma comunicação entre todos. Por exemplo: todos sabem – mesmo que não conheçam o jogo – que 24 é (data venia aos gays) o algarismo do veado. De tal modo que ser chamado pelo número é como ser igualado ao próprio bicho e a suas características.
Um jogo culturalmente aprovado e economicamente exitoso é considerado ilegal, mas continua até os nossos dias, numa flagrante contradição entre as leis e a capacidade de o governo honrar essa ilegalidade. Hoje temos mais um surto para detê-lo, mas o jogo continua. Não é a primeira vez que os bicheiros são presos. Isso sucedeu há exatamente 19 anos, quando a juíza Denise Frossard realizou o mesmo movimento – mas o jogo (com tudo o que ele conduz de malsão) retornou à cena.
Nesse grave contexto de prisões e intenções de proteger a sociedade contra pretensos meliantes, cabe discutir um ponto central: a produção da ilegalidade no Brasil. Em nosso país, tudo o que é legal ou ilegal tem uma zona cinzenta, onde as coisas vazam e o ilegal vira legal (e vice-versa). É o caso das questões do Enem, dos concursos públicos e – eis o assunto do momento – das concorrências públicas. Se assim é, cabe a pergunta que não quer calar: seria o jogo um crime relativo (porque o governo banca outros tipos de jogo, como as loterias) ou o que temos de fato é um traço nacional a ser discutido com mais clareza? Refiro-me, é claro, ao fato de que somos rápidos em legislar, resolvendo a realidade com uma proibição, mas muito ineficazes em vigiar e punir.
Não seria melhor tornar legal o inevitável, controlando com rigor seus excessos, em vez de continuar nessa nossa modernidade por decretos que não operam na prática? O que seria dos ingleses se eles proibissem as apostas nos cavalos, que, por sinal, são um jogo permitido no Brasil? O que ocorreu com os americanos na Lei Seca? O que aconteceria se os concursos de beleza fossem proibidos como ocorreu no governo de Jânio Quadros? Com a palavra, você, caro leitor.
Fonte: revista “Época”
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