A rotina aterrorizante que estudantes cariocas têm vivido em escolas localizadas em áreas conflagradas — e que traduzida em números mostra que, dos 107 dias letivos do primeiro semestre, em apenas oito todos os colégios da rede municipal abriram sem a interferência de tiroteios, segundo a prefeitura — foi debatida nesta quinta-feira, em Genebra, durante um evento do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). De acordo com o órgão, submetidos regularmente ao medo de serem atingidos por balas perdidas, alunos do Rio estão sob grande risco de não desenvolverem integralmente o seu potencial.
De acordo com o Unicef, “estudos mostram que interrupções repetidas em ambientes de violência afetam negativamente a habilidade das crianças de se concentrarem e aprenderem sem medo. Precisar buscar abrigo e esconderijo e até testemunhar episódios de violência têm um grande impacto psicossocial nas crianças e várias relatam sofrerem de síndromes de estresse, como pesadelos e crises de ansiedade. Crescer em um ambiente com frequentes episódios de violência armada também pode fazer com que as crianças percebam a violência como o procedimento normal na resolução de conflitos”.
Em comunicado, o Unicef informou que está preocupado com o impacto da violência no dia a dia de crianças cariocas, visto que “uma em cada quatro escolas da Secretaria municipal de Educação, Esportes e Lazer teve que fechar durante determinados períodos ou foram forçadas a interromper as aulas por causa dos tiroteios ou outros tipos de confrontos”.
Em Acari, 30 dias sem aulas
A rede municipal de ensino tem 650 mil alunos. De acordo com a prefeitura, a violência na cidade provocou o fechamento de 381 das 1.537 escolas da rede municipal, pelo menos uma vez desde o início do ano letivo, iniciado em 2 de fevereiro. Segundo a Secretaria municipal de Educação, ficaram sem aulas 129.165 estudantes. Entre os locais mais afetados, de acordo com levantamento do órgão entregue à Secretaria estadual de Segurança, estão Acari (ficou 30 dias sem aula), Complexo da Maré (18 dias), Complexo do Alemão (15 dias); Cidade de Deus (16 dias) e Vila Kennedy (14 dias). Em abril, a estudante Maria Eduarda Alves Ferreira, de 13 anos, foi morta no pátio da Escola Municipal Jornalista Daniel Piza, em Acari.
No Rio, a cada três dias uma escola da rede municipal é invadida ou assaltada. Entre janeiro de 2016 e abril deste ano, foram 157 furtos, 19 invasões e um caso de dano ao patrimônio. Para a Coordenadora da Plataforma dos Centros Urbanos e Chefe do escritório do Unicef no Rio, Luciana Phebo, a situação é grave e precisa ser pensada no âmbito da proteção aos direitos da criança e do adolescente.
— É preocupante, porque estas crianças estão em fase de desenvolvimento de suas relações sociais, de confiança no outro. Há um impacto na capacidade de aprendizado e o contato com tanta violência pode afetar a saúde física e mental de crianças e adolescentes — diz Luciana, acrescentando que o Unicef vem participando de reuniões e grupos de trabalho com as autoridades de educação e segurança no Rio, para buscar uma solução coordenada para esta crise.
Ainda de acordo com o comunicado do Unicef, “a violência também afeta o sistema de educação em outras regiões do país. De acordo com uma pesquisa nacional sobre saúde na escola, quase 10% dos adolescentes nas regiões Sudeste e Nordeste do país já passaram pela experiência de ter a escola fechada por causa da violência, enquanto na Região Sul apenas 2% viveram algo parecido”.
Ainda de acordo com o órgão, o Brasil tem uma das maiores taxas de homicídio de adolescentes do mundo. Em 2015, mais de 10 mil adolescentes entre 10 e 19 anos foram assassinados.
Para ajudar os professores de escolas situadas em áreas de risco a lidarem com a violência, a prefeitura ofereceu recentemente um curso de proteção para situações de guerra, com integrantes da Comitê Internacional da Cruz Vermelha. A iniciativa do treinamento para profissionais da rede municipal de ensino foi da própria secretaria, com base em um programa implantado pelo comitê nas áreas de saúde e educação do estado, em 2009 e 2013. Segundo a prefeitura, o curso faz parte de uma série de medidas para amenizar a violência que vem se abatendo sobre as escolas municipais desde o início do ano letivo. O programa, realizado em parceria com a Secretaria municipal de Educação, prevê o treinamento de 40 professores. O mesmo curso já foi aplicado tanto em contexto de conflito armado como de violência urbana, em países como Colômbia, Ucrânia, Líbano, Honduras e México.
Ato pela paz
A Secretaria municipal de Educação, Esportes e Lazer informou, por meio de sua assessoria, que o Unicef tem sido um importante parceiro na luta pela paz no entorno das escolas, tendo participado de reuniões e sendo uma das primeiras entidades a assinar o manifesto “Aqui é um lugar de paz”. Segundo a secretaria, “a discussão sobre a violência nas escolas da rede é hoje uma das principais pautas do órgão. O dia 6 de abril ficou marcado como o início de uma campanha pela paz em todas as 1.537 unidades escolares. Naquele dia, estudantes e profissionais se reuniram para uma grande mobilização pela paz e contra a violência”. Para o próximo dia 17, está sendo convocado um ato das escolas, pedindo paz no Rio, no Aterro do Flamengo.
Procurada, a Secretaria estadual de Segurança não comentou as declarações do Unicef.
Fonte: “O Globo”.
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