Universidades e empresas ainda têm de trabalhar juntas pela inovação através do empreendedorismo
A paulistana Letícia Passarelli tinha 23 anos quando decidiu transformar uma necessidade em ideia de negócio. Letícia perdia muito tempo procurando estacionamentos em São Paulo. Só ao embicar o carro em cada estabelecimento descobria até que horas o local ficava aberto e quanto iria custar. Era o ano de 2013 e aplicativos como o Waze começavam a se popularizar. Letícia juntou-se a dois amigos e fundou o Let’s Park, um aplicativo que indica localização, preço e horário de funcionamento dos estacionamentos nos arredores do usuário. Em meses, conquistou milhares de usuários, o suficiente para chamar a atenção da fabricante de automóveis Ford, que adotou a tecnologia nos sistemas de GPS de seus veículos. Hoje, o serviço funciona em seis países e atrai a atenção de investidores – uma oferta está em negociação. Se Letícia morasse em San Francisco ou Boston, nos Estados Unidos, é provável que sua ideia fosse colocada em prática dentro de alguma universidade, o caminho natural para jovens estudantes com veia empreendedora. Google e Facebook são exemplos famosos. No Brasil, Letícia, que à época estudava administração numa universidade renomada do ABC paulista, preferiu recorrer à experiência da família – o pai é empresário. “Na faculdade, lembro de um único professor que nos ensinou a elaborar um plano de negócios, algo básico para quem quer empreender”, diz.
Letícia e estudantes como ela motivaram um estudo recente realizado pela Endeavor, uma ONG multinacional de incentivo ao empreendedorismo, e pelo Sebrae. A pesquisa ouviu mais de 2 mil alunos e 680 professores em 70 instituições de ensino. Concluiu que faltam, nas universidades brasileiras, infraestrutura e conteúdo que capacitem jovens dispostos a criar seus próprios negócios. Para chegar à conclusão, as duas instituições elencaram quais seriam as boas práticas de uma “universidade empreendedora”, como disciplinas práticas, contato com ex-alunos que empreenderam e com potenciais investidores. O estudo mostrou que apenas 35% dos estudantes brasileiros se dizem satisfeitos com o que as universidades oferecem. Já entre os professores, 65% consideram a estrutura satisfatória – um descompasso evidente. Como uma das consequências, a universidade não é a referência para esses jovens. Assim como Letícia, 76% dos estudantes que empreendem encontram na família, e não na faculdade, a conversa útil aos negócios. A reclamação geral é que os cursos têm muita teoria e pouca prática. Pior: oferecem muita motivação e pouca orientação concreta, como estudos de casos e informação financeira e jurídica.
A Endeavor defende que a universidade ambicione se tornar o núcleo de um ecossistema salutar de empreendedorismo inovador. Por agregar conhecimento e oferecer tempo e espaço para experiências, a universidade tem vocação para gerar negócios de alto impacto econômico e social, diferentemente daqueles voltados apenas ao autossustento ou sem proposta inovadora. O exemplo usado no estudo é do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT. Em 2014, havia nos Estados Unidos 30 mil empresas ativas fundadas por ex-alunos da universidade, ao longo das últimas décadas. Na época em que o levantamento foi feito, elas empregavam 4,6 milhões de pessoas. Nesse meio-tempo, a universidade também foi responsável por uma produção de ciência básica invejável e formação de profissionais de alta qualificação técnica, que foram ao mercado disputar salários em vez de criar negócios próprios. Desse modo, enfatizar o empreendedorismo não desvirtuou as outras qualidades da universidade. “O ensino está desconectado da realidade, o que dificulta o nascimento de ideias”, diz Juliano Seabra, presidente geral da Endeavor. “Impossível falar de inovação em um sistema que só olha para dentro”, diz.
A falta de disciplinas mais práticas e de professores com experiência se une à falta de ambição de boa parte dos alunos. Do pequeno grupo de estudantes entrevistados que disse empreender, apenas 4% acham que têm um produto ou serviço inédito no Brasil. Para o biólogo Fernando Reinach, doutor pela Cornell University Medical College, executivo do fundo de investimentos Pitanga e ex-empresário, não é necessário ensinar ao aluno conteúdo relacionado à abertura de empresas. Ele lembra que o MIT se dedica a formar especialistas, gente disposta a passar cinco anos mergulhada num assunto sem ter a certeza de que aquilo vai gerar lucro. O incentivo principal é criar algo novo. Isso atrai outros interessados, como potenciais investidores. Cabe à universidade orientar e ajudar a conectar os parceiros. “Quem cria algo brilhante, geralmente não teve tempo para estudar outra coisa. Nesse caso, a técnica e a capacidade criativa do aluno importam mais do que ele saber como criar uma empresa”, diz.
A troca de ideias entre universidade e empresa também beneficia a Universidade Stanford, em Palo Alto, na Califórnia, onde estudou o amazonense Gabriel Benarros, de 27 anos. Ele fundou o Ingresse, um serviço de vendas de ingressos que em 2016 deverá movimentar R$ 150 milhões. Benarros havia cursado medicina na Universidade Federal do Amazonas, mas não se encantou com o curso. Optou por estudar economia comportamental e psicologia social. Logo que chegou à universidade americana, conta que conheceu o brasileiro Mike Krieger, criador do Instagram. No ano seguinte, foi apresentado a Evan Spiegel, do fenômeno Snapchat. Ele atribui o espírito empreendedor local à flexibilidade de matérias na grade, que permite aos estudantes combinar conhecimentos de áreas diferentes, e ao contato direto com empresas, que demandam projetos à academia. “Não existe preconceito entre a academia e o mercado. Os professores falam de negócios e têm contato com negócios”, diz.
O distanciamento entre a academia e o mercado, ainda forte no Brasil, tende a perder força com a aprovação do Marco Legal da Inovação, que ocorreu no início do ano. Em meio à tempestade política que o país vivia, acabou passando despercebido. Com ele, finalmente, o professor universitário poderá ter participação acionária em negócios e mesmo assim trabalhar em uma instituição de ensino pública, algo antes proibido. Em países como Estados Unidos, Israel e Coreia do Sul, já é permitido há muito tempo. “Por anos, existiu essa tendência do acadêmico brasileiro de se fechar dentro dos muros da universidade”, diz o diretor de Engenharia do Google para a América Latina, Berthier Ribeiro-Neto, que transitou bem pela ponte entre academia e mercado. Para empreender, precisou tirar diversas licenças do cargo de professor da Universidade Federal de Minas Gerais. Em 2005, vendeu sua empresa para o Google, tornou-se um pesquisador importante na multinacional e ajudou a colocar Belo Horizonte no mapa global da ciência de buscas na internet. “O impacto das ideias do pesquisador na sociedade é muito maior quando ele as leva ao mercado”, diz.
É preciso colocar esse movimento em perspectiva. Mesmo se as instituições de ensino superior do Brasil levarem o tema mais a sério e os alunos buscarem ideias mais ambiciosas, o empreendedorismo inovador ainda será pequeno dentro do universo da criação de negócios próprios. No Brasil há muito empreendedorismo porque há muito desemprego, informalidade e instabilidade. Guilherme Afif, presidente do Sebrae, alerta que a maioria das microempresas no Brasil se destina apenas ao sustento de seus fundadores, sem expectativa de crescimento. Ao formar jovens apenas para buscar trabalho assalariado, a universidade não contribui para que esse quadro mude. Afif defende que a universidade se esforce para levar seu conhecimento ao empreendedorismo comum, mesmo que sem grandes ambições inovadoras – ao bar ou consultório que o estudante queira abrir. Esse primeiro passo já inspiraria mais jovens a tentar criar seus negócios. E a confiar mais nos professores para conversar a respeito.
Fonte: “Época”.
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