*Por Pedro Ferreira e Renato Fragelli
O debate sobre universidades públicas brasileiras se dá, muitas vezes, de forma superficial e apaixonada. De um lado, grupos hostis que gostariam de ver seu papel (muito) reduzido, ou mesmo veem nelas a causa dos problemas estruturais da educação no Brasil; de outro aqueles que as consideram vacas sagradas, opondo-se a qualquer proposta de melhoria ou mudança como se fosse um ataque aos direitos inerentes de todos os brasileiros. A verdade não está em nenhum desses extremos.
O Brasil sempre gastou proporcionalmente muito mais com alunos do ensino superior do que com alunos do primário ou secundário. Em 1998, primeiro ano com dados disponíveis na base do Banco Mundial, gastava-se 7,4 vezes mais com universitários do que com alunos do primário. Dado o volume de pesquisa e os atendimentos ao público por hospitais universitários, é natural que a razão seja superior à unidade.
Mas não justifica que seja quase o triplo do observado na mediana dos setenta países da amostra. A razão vem caindo, aproximando o Brasil da norma internacional, mas o efeito sobre a geração que hoje está no mercado de trabalho permanecerá.
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A qualidade geral da educação no Brasil é muito baixa. Os testes internacionais mostram que grande parte dos alunos saem da escola com conhecimento limitado de português e matemática. A pouca escolaridade e deficiência cognitiva reflete-se em produtividade sofrível e baixos salários. O gráfico apresenta, para vários países, a relação entre a nota no PISA (2015) – teste internacional de conhecimentos em matemática, ciência e línguas para alunos de 15 anos – e a razão entre o gasto por aluno na universidade e o gasto por aluno no primário e secundário, na média 1998-2010. Claramente, existe uma correlação negativa entre a qualidade da educação básica e distribuição do gasto com educação entre ensino básico e universitário.
Correlação não implica causalidade, não se podendo concluir automaticamente que a qualidade da educação básica no país é ruim porque se gastou muito, durante muito tempo, com universidades públicas. Entretanto, por décadas, e até há pouco tempo, o total de recursos dedicados à educação foi baixo, e a concentração em ensino superior reduziu o montante que deveria ter sido dedicado às crianças.
A solução não está em fechar as universidades públicas ou reduzir drasticamente seu financiamento. Grande parte da pesquisa básica no Brasil é feita dentro dessas universidades, e isto é essencial para o desenvolvimento do país. Parte dessas pesquisas será utilizada por empresas, gerando mais riqueza. Com novas regras para parcerias entre universidades públicas e setor privado, a difusão para sociedade do conhecimento nelas criado tende a aumentar.
Há forte evidência de externalidades da pesquisa aplicada sobre o crescimento econômico, de forma que o retorno para sociedade do gasto no ensino superior supera o gasto direto. Mais uma razão para o governo continuar investindo no setor.
Assegurar financiamento à pesquisa, prestigiando as boas universidades públicas, não implica deixá-las exatamente como estão hoje, como se as regras atualmente em vigor fossem sagradas. Há muitas dimensões onde se pode melhorar, aumentar o retorno para a sociedade e fazer melhor uso dos recursos públicos. A pesquisa em muitos departamentos das mais diferentes áreas está entre sofrível e inexistente. Há programas de pós-graduação que, em toda sua história, nunca publicaram artigos científicos em revistas internacionais de prestígio.
O financiamento deveria premiar a excelência. É preciso criar mecanismos que premiem pesquisadores produtivos e punam os improdutivos. O sistema atual, onde pesquisadores são servidores públicos com estabilidade desde o início da carreira, e em que a promoção se dá por tempo de serviço, e não por excelência, constitui um incentivo à acomodação.
Uma segunda dimensão em que se pode avançar seria na cobrança de mensalidades. É verdade que há fortes evidências de externalidade na educação superior. Enrico Moretti, no livro “The New Geography of Jobs”, mostra que, em locais onde há maior concentração de trabalhadores com diploma universitários, não só estes recebem salários maiores, mas também os trabalhadores sem diploma. Embora o maior benefício do ensino superior seja absorvido por quem passa pela universidade, mesmo aqueles que não tiveram a mesma oportunidade se beneficiam quando estão cercados por pessoas qualificadas.
Isto justifica o subsídio ao ensino superior. Mas o Estado pagar integralmente a educação de quem poderia muito bem pagar por ela é socialmente injusto.
Finalmente, em muitos casos a gestão das universidades é ruim. A USP encontra-se em crise financeira porque reitores do passado foram excessivamente generosos nos aumentos salariais. Há casos de pessoal administrativo ganhando mais do que professores, bem como de professores ganhando acima do teto constitucional. O recente incêndio do Museu Nacional aponta para erros gravíssimos de gestão. Há que se criar mecanismos para corrigi-los ou punir os responsáveis. Autonomia não pode significar falta de controle pela sociedade.
As universidades públicas terão sempre um enorme e importante papel a desempenhar na sociedade brasileira. Podem, e em grande medida já o fazem, ajudar na melhoria da educação da população e no aumento de sua qualidade. Culpá-las pelos seculares problemas do ensino brasileiro faz pouco sentido, embora tenha havido no passado uma grande assimetria no financiamento dos diferentes níveis de ensino. Entretanto, sua defesa incondicional, como se tudo estivesse muito bem, faz menos sentido ainda. Fechar os olhos para isto só reforça o discurso de quem gostaria de vê-las fechadas ou caladas.
Fonte: “Valor Econômico”, 27/06/2019