O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), disse nesta semana algo preocupante sobre o emprego da força letal pela polícia: “[…] Imobilização do bandido que estiver armado. Se ele ainda assim reagir, ele não vai para a delegacia ou para a prisão. Ele vai para o cemitério”.
Durante a campanha, Doria já havia feito discurso semelhante, gerando, inclusive, o seguinte posicionamento do comandante da PM, coronel Marcelo Vieira Salles: “Somos profissionais. Tem que agir tecnicamente e dentro da legalidade […] O policial só deve fazer uso da força de forma progressiva […]”.
A legislação brasileira é clara, estabelecendo como excludentes de punibilidade tanto os atos praticados em legítima defesa como aqueles realizados no estrito cumprimento do dever legal. Se o governador está querendo dizer que as polícias cumpram a lei, não há nada de novo. Porém, a contundência e ambiguidade de seu discurso pode levar a que alguns setores minoritários das polícias o tomem como uma autorização para empregar a força letal de forma abusiva. Inclusive em relação a suspeitos que reajam ainda que imobilizados.
Essa não é uma hipótese abstrata. O Brasil tem uma das mais violentas polícias do mundo, ainda que avanços meritórios tenham sido feitos nas últimas décadas, por intermédio da ascensão de lideranças mais profissionais, treinamento de policiais para situações de confronto, atuação de corregedorias e ouvidorias e afastamento e responsabilização criminal de maus servidores públicos.
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Apenas no ano de 2017, 5.159 pessoas foram mortas em confronto com policiais militares e civis, incluindo policiais de folga, o que significa 14 mortos a cada dia, 20% a mais do que em 2016. O número de policiais mortos também é altíssimo. Foram 386, sendo que 300 estavam de folga; muito possivelmente trabalhando como seguranças privados, em condições de alto risco, em face dos baixos salários que recebem do estado (dados do Anuário 2017 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública).
Embora muitas pessoas comemorem o alto número de pessoas mortas pela polícia, isso indica apenas que o Estado perdeu o controle sobre a manutenção da ordem pública, buscando superar sua incompetência pelo emprego da violência ilegal. O que apenas aumenta a desconfiança da população em relação às polícias, especialmente por parte da população jovem e negra que se encontra mais vulnerável à violência policial, reduzindo sua efetividade.
Por outro lado, na medida em que suspeitos passam a ter a convicção de que serão eliminados, mesmo que se rendam ou sejam imobilizados, há uma tendência a se tornarem ainda mais violentos, aumentando o número de policiais mortos, o que é inaceitável. É preciso romper esse círculo perverso, e somente o Estado pode fazer isso.
A flexibilização das regras para emprego da força letal ou abusiva, como a tortura, não pode ser vista como uma substituição à construção de políticas efetivas de segurança. A contrário, elas prejudicam as boas políticas de segurança. Há uma associação entre violência e corrupção.
O que precisamos é de qualificação profissional, emprego sistemático de inteligência e de estratégias preventivas, racionalização da política de drogas, reforma do sistema prisional (celeiro do crime organizado), controle de armas (que matam a população e policiais), pagamento de salários dignos (para que os policiais não morram fazendo “bico”) e estrito cumprimento da lei. Só assim garantiremos o direito humano à segurança. O resto é bravata.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 19/01/2019