Os rótulos estão em alta; o pensamento, em baixa. Seja “esquerda”, “direita”, “liberal”, “conservador”, “progressista”, todo mundo quer um cercadinho ideológico para chamar de seu. Nesse pacote, você ganha algumas opiniões prontas, palavras de ordem e inimigos determinados. Melhor de tudo: de agora em diante, para criticar alguma posição ou pessoa, não é preciso argumentar; basta atribuir a ela o rótulo contrário.
A tática não é nova. Cresci vendo opiniões serem automaticamente desqualificadas como “neoliberais”. Agora o hábito se difundiu, e dá para desmerecer posicionamentos de todo o espectro político: petralha, reaça, extrema direita, extrema esquerda. Em vez de mostrar que ele produzirá efeitos ruins na sociedade, partimos do pressuposto de que sua fonte ideológica é maligna. E quanto mais nossos aliados acreditarem que estão em algum tipo de cruzada santa (pela civilização ocidental, pela liberdade, pelos direitos humanos etc.), mais fácil é o trabalho.
O rótulo como manobra de desqualificação é um sintoma de nossa preguiça intelectual. O uso de rótulos em si, contudo, é uma necessidade do intelecto: não temos como lidar com todos os detalhes e pequenas variações que o mundo nos apresenta. Por isso agrupamos fenômenos similares sob um mesmo nome. A maneira como eu encaro os problemas da sociedade e suas soluções pode não ser idêntica à sua, mas se partilharmos de algumas premissas importantes e buscarmos soluções pelos mesmos caminhos, dá para nos agrupar na mesma classificação.
Ao fazê-lo, contudo, colocamos em andamento um processo que não é puramente intelectual, mas também social. Ao atribuir a nós mesmos um rótulo ideológico, passamos a nos ver como parte de um time ou tribo. E estamos cercados de tribos rivais. Se perdermos, nossa existência está em jogo. Nesta chave, o conteúdo específico das ideias torna-se irrelevante perto de seu papel como símbolos identitários, afirmações da nossa existência e de nosso poder. Ser contra ou a favor do Estado é equivalente a usar camisa vermelha ou verde-amarela na passeata; a preferir sertanejo ou MPB.
Quando o pensamento político se torna ferramenta para arregimentar seguidores, ele deixa de lado a função que esperamos dele: descobrir o melhor jeito de organizar a sociedade, buscando algo como um bem comum que vá além do interesse imediato de alguma tribo.
De Sócrates até hoje, o desafio da vida pública é encontrar um equilíbrio entre essas duas tendências. Pensar apenas no bem comum e na elaboração intelectual de propostas, sem estratégia ou pragmatismo, é se lançar na irrelevância; viver no mundo dos sonhos e ainda ser usado por oportunistas em busca de uma justificativa teórica para disfarçar seu projeto amoral de poder. Aderir, por outro lado, à lógica da guerra tribal irrestrita é contribuir para a degeneração da ordem política, caminhando em última análise para a tirania.
A politização do Brasil é uma oportunidade para vencer desafios históricos. Se nossos líderes a usarem apenas para promover a guerra fratricida e alimentar o fanatismo, ficaremos piores que antes; ainda pobres, só que mais divididos. É responsabilidade dos formadores de opinião procurar caminhos para a união.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 26/09/2017.
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