A sociedade paulista já olhou com veneração para a Universidade de São Paulo (USP). Hoje olha com reservas. Talvez com desconfiança. Não que a instituição tenha perdido o respeito dos cidadãos que a sustentam. Não que ela envergonhe São Paulo. O deslocamento que se vem dando – bastante difícil de medir com precisão, por mais refinadas que sejam as técnicas de aferição da tal opinião pública – é menos linear, menos direto, menos mecânico, menos unívoco. A gente é capaz de senti-lo, mas ainda não é possível traduzi-lo numa demonstração empírica irrefutável. A USP segue sendo essa espécie de “orgulho nacional paulista” (ainda bem), mas quando entra na pauta da sociedade civil é, no mais das vezes, como fator de dor de cabeça.
Raramente se fala dela como geradora de um grande achado da ciência. Esta gloriosa sigla, USP, migrou melancolicamente para as páginas policiais, seja porque uma caloura alega ter sido estuprada numa festa da escola, seja porque um motorista bêbado atropelou atletas que corriam pelas alamedas emolduradas de verde na Cidade Universitária. O pior acontece quando, em decorrência de desentendimentos entre servidores e gestores da reitoria, a violência aberta se espraia entre manifestantes universitários e policiais, como vimos ontem, mais uma vez. A universidade, que já viveu duros tempos de barbárie, na expressão de um de seus grandes filósofos, vai se tornando a própria sede da truculência, da estupidez e da treva.
Visto de dentro, o cenário não poderia ser mais degradante. O professor que ama aqueles gramados, tem estima pelo perfil dos edifícios no horizonte, vê nos olhos dos alunos o futuro do Brasil sente passar pelos joelhos o impulso de se sentar na sarjeta e chorar, pondo os livros de lado. Onde foi parar a capacidade de diálogo? Visto de fora, entretanto, o cenário é muito pior, muito mais vexatório. O paulista que não é aluno, nem funcionário, nem professor da USP fica desorientado: “Mas esta é a universidade que, no ano passado, consumiu R$ 5,3 bilhões do dinheiro público?”. Quando vê o quebra-pau dos acadêmicos nos telejornais, o cidadão coça a cabeça: será que tantos títulos de doutorado e tanta livre-docência não ensinaram esse pessoal a conversar entre si?
Para complicar a equação, os dinheiros da USP, que não são pequenos, têm sido mal geridos. No ano passado a instituição de 92.792 alunos gastou R$ 1 bilhão além do que recebeu do Estado (o repasse foi de R$ 4,3 bilhões e ela usou R$ 1 bilhão de suas reservas financeiras para completar a despesa anual de R$ 5,3 bilhões). Em junho de 2014, só a folha de pagamento de seus 17.450 funcionários e 6.008 professores consumiu 105,6% das receitas. A decisão de congelar a folha de pagamento no primeiro semestre de 2014 – tomada pela reitoria da USP em conjunto com a reitoria da Unesp e a da Unicamp -, ainda que compreensível como medida emergencial, emitiu um sinal difícil de engolir: o de que o custo pelo rombo (lautamente forjado na gestão anterior da Reitoria, que se encerrou em 2013) deveria ser reposto pelo bolso dos servidores, que não têm nem tiveram a menor responsabilidade pelo déficit. Como reação, o sindicato dos funcionários decretou uma greve que resultou pífia, minoritária, embora tenha angariado a adesão de uns poucos estudantes e professores. O discurso da intolerância recrudesceu. “Morte aos fura-greve” (sic), diz uma pichação na Escola de Comunicações e Artes (ECA). No final do dia de ontem haveria uma tentativa de acordo. Improvável.
Algumas comparações básicas, primárias, nos ajudam a entender um pouco melhor a perplexidade do cidadão. A Prefeitura de São Paulo, por exemplo, que conta com 136 mil funcionários (em 2013) para cuidar da vida de 11,8 milhões de habitantes (bem mais que os 92 mil alunos da USP), mantendo escolas, postos de saúde, asfalto e muito mais, teve um orçamento de R$ 42 bilhões no ano passado. A sociedade então indaga: quem precisa mais do dinheiro público, os moradores das periferias desassistidas ou os doutores em greve do campus do Butantã? Não, não adianta tentar desqualificar essa pergunta. Ela não tem nada de neoliberal ou de privatista. É apenas razoável e, pelo menos até ontem à tarde, não havia sido bem respondida.
É cada vez mais assim, como centro de custos (descomunais) e como palco de confusões (de mau gosto) que a sociedade paulista ouve falar de sua universidade. Não obstante, é da opinião dessa sociedade que depende a sustentação da USP. É incrível, ou mesmo inconcebível, como a USP pode ter voltado as costas por tanto tempo à sociedade que a sustenta. É incompreensível que tenha fechado seus portões, no plano físico e no plano simbólico, para essa mesma sociedade. Parece um suicídio institucional. A USP deixou-se isolar de seu tempo e de sua gente e, solitária, ficou refém de suas assombrações materiais: sua burocracia ressequida e opaca (é mais fácil saber quantos espiões trabalham na NSA americana do que descobrir o custo detalhado de uma rubrica na Cidade Universitária), seus grevistas folclóricos, suas estruturas de poder anacrônicas e ineficientes.
Entre os enganos que têm feito estragos no presente, o mais nocivo talvez seja o de achar que a atual reitoria é um mero prolongamento dos erros passados. Não é. Ao contrário, resulta de um movimento legítimo para superar o desgoverno que gerou o rombo financeiro e aprofundou a crise. O discurso que tenta desconstituir o reitor deve cessar. A obsessão por piquetes e “trancaços” precisa ceder. Da parte da reitoria, empenhada em combater a opacidade e o burocratismo, a disposição de negociar deve ser mais clara. Só o diálogo poderá recuperar a admiração dos paulistas e abrir as portas do futuro da nossa universidade.
O terrível é que nada tem sido tão complicado quanto esperar diálogo na USP. Ganhar um Prêmio Nobel seria mais fácil.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 21/08/2014
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