A Constituição brasileira foi a terceira mais longa do mundo, numa lista de 190 analisadas pelo Comparative Constitutions Project. Com 64.488 palavras, ficamos atrás apenas de Índia e Nigéria na extensão do texto. Também somos o décimo país na quantidade de direitos garantidos: 79 — os três primeiros são Bolívia (99), Equador (88) e Sérvia (87). Na versão mais recente, nossa Carta já chegou a 69.436 palavras (fica atrás apenas da indiana). O substantivo “direito” aparece, no singular ou no plural, 167 vezes. Há apenas 45 aparições do termo “dever”, como substantivo ou verbo. Desde que ela foi promulgada, já sofreu 101 emendas, seis já na revisão em 1994. Só para comparar: a Constituição dos Estados Unidos, promulgada em 1789 e ratificada em 1791, foi emendada 27 vezes desde então, a última em 1992. No mesmo período, o Brasil independente teve oito Constituições distintas — cinco votadas (uma sob ditadura militar) e três outorgadas. Eis que, sob o impacto da Operação Lava Jato, um grupo de juristas renomados defende agora que façamos a nona, para tentar salvar a política.
Trata-se de mais uma encarnação da recorrente prática brasileira de tentar corrigir nossas mazelas por meio da “fúria legiferante”. O economista, político e diplomata Roberto Campos, cujo centenário de nascimento foi celebrado na semana passada, comparava esse mal a uma infecção, a “constitucionalite, uma espécie de diarreia constitucional”. “O problema brasileiro nunca foi fabricar Constituições, e sim cumpri-las”, escreveu em seu monumental livro de memórias, “A lanterna na popa”. Destacam-se nos dias de hoje, entre as quase 1.500 páginas, aquelas em que ele descreve sua atuação na Constituinte de 1987 — qualificada como um “happening assembleísta”, em que já se destacava o “nacional-obscurantismo” das empreiteiras e a “República Independente da Petrobras”. Basta ler os capítulos dedicados ao assunto para sair convencido do caos que impera quando “cada parlamentar sente uma tentação insopitável de inscrever no texto constituinte sua utopia particular”. Acabaram incluídos na versão final dispositivos absurdos, já rechaçados nas comissões temáticas, que o Congresso se veria obrigado a emendar nos anos seguintes — como o tabelamento dos juros em 12%, a definição de empresa de capital nacional ou a proibição de exploração do subsolo por capitais estrangeiros. De outros artigos estapafúrdios, não nos livramos até hoje.
“A situação ideal é a inglesa”, escreve Campos. “Contentam-se os britânicos com a Magna Carta de 1215 e o Bill of Rights de 1679 (…). Uma segunda solução — second best — é a americana: uma Constituição que dura há mais de 200 anos.” No Brasil, dizia ele, as Constituições padecem de três defeitos. Primeiro, são “reativas”. Mudam não para adaptar-se às circunstâncias, mas ultrapassam o ponto de equilíbrio para redimir falhas atribuídas à anterior. Foi esse o caso do texto de 1988, com sua barafunda de direitos e garantias, compensação evidente pelos anos de autoritarismo. Segundo defeito: nossas Constituições são demasiado “instrumentais”. Em vez de se ater a princípios da relação entre Estado e cidadãos, adotam uma postura dirigente e detalhista sobre a vida pública. Também é o caso da Carta de 1988, onde quem soube fazer lobby arranjou uma estaca para amarrar sua montaria — estão lá os portos lacustres, a Polícia Ferroviária Federal e até o Colégio Pedro II. Terceiro defeito: são “utópicas”, por não distinguir as garantias não onerosas das onerosas. As primeiras são direitos conhecidos como “negativos”, que não exigem gastos do governo para existir: voto, associação, opinião, expressão, religião, orientação sexual e por aí afora. As segundas, correspondentes a direitos “positivos”, inexistem sem custo: aposentadorias, educação, saúde, meio ambiente, salários e tudo aquilo que se convencionou classificar como “conquistas sociais” — capítulo em que a Constituição de 1988 é pródiga. “Essas garantias devem ser objeto de regulação infraconstitucional, porque é necessário medir os custos e especificar quem vai pagar a conta”, diz Campos.
O risco de escrever hoje uma Constituição do zero é o mesmo daquela época: abrir a porteira para toda sorte de delírio. O resultado jamais corresponderá à utopia de constituintes, juristas ou de quem quer que seja. “Meu ceticismo em relação a textos constitucionais é acachapante”, escreve Campos, com a experiência de quem tomou parte (ou esteve perto) da elaboração das Constituições de 1946, 1967 e 1988. “O nível intelectual médio dos constituintes de 1988 terá sido talvez o mais baixo da história constitucional brasileira.” Alguém acredita, pelas demonstrações que emanam do Congresso, que algo tenha melhorado de lá para cá? Imaginar que uma nova Constituição é a melhor forma de corrigir os equívocos da atual é apenas incorrer noutra utopia – uma utopia de jerico.
Fonte: “Época”, 23 de abril de 2017.
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