A intervenção na Líbia vem gerando, nos Estados Unidos, intensa polêmica sobre a legitimidade da ingerência na política interna desse país do norte da África. Muitos americanos argumentam que, na invasão do Iraque, pelo menos havia o pretexto de impedir o ditador Hussein de usar terrificante arsenal de extermínio que ameaçava a segurança internacional (arsenal cuja existência foi depois desmentida). Porém, dizem, os embates na Líbia tratam-se de um conflito eminentemente doméstico e, portanto, não justifica-se uma intromissão externa.
Será que esse tipo de questionamento ainda continua válido? Não estaria ele sendo gradualmente superado a medida que todos os gêneros de distância entre as nações estão cada vez menores? Em uma época onde a globalização econômica e informativa avança inexoravelmente, tudo indica que é inevitável caminharmos em direção a uma nova realidade, onde a globalização se estenderá também às esferas política, social e cultural de cada país.
Não estou me referindo às modalidades milenares do que poderíamos chamar de velha globalização política, isto é, as guerras, as conquistas colonialistas, as interferências obscuras nos destinos de outros países e o imperialismo tipo soviético. Vislumbro, isto sim, um processo pelo qual a comunidade mundial passe a não tolerar o fato de que algumas nações mantenham hábitos delinqüentes em termos de democracia, ordem jurídica, direitos humanos, equidade social e conservação do meio ambiente, ou esteja sendo palco de lutas fraticídias.
Em pleno segundo milênio, quando parte deste planeta transforma-se velozmente mediante o avanço tecnológico e, ao mesmo tempo, parcela da população mundial atinge um estágio mais elevado de lucidez humanística, sofisticação cultural e solidariedade internacional, torna-se cada vez menos concebível permanecer indiferente ante o obscurantismo que subsiste. Atos com um grau de barbarismo equivalente aos da tirania de Nero, da Inquisição e do extermínio dos índios no continente americano tendem a não mais serem interpretados como uma pitoresca excentricidade que está ocorrendo “em algum canto da terra”.
Mesmo sem percebermos, vem ocorrendo uma diminuição na viabilidade da coexistência entre contrastes excessivos entre os costumes sociais e políticos de cada país. Inclusive, pode-se antever o declínio na incidência de arrogância na política externa de certos governantes, tipo Irã e Coréia do Norte. Um movimento de convergência induzirá, espontaneamente ou via ação internacional, o combate a:
a) comportamentos que, embora enraizados em certas sociedades, contém ingredientes de selvageria e destoam das conquistas da humanidade no campo do respeito ao cidadão;
b) focos de deterioração política violenta, envolvendo risco de genocídio.
Levando em conta esses indícios de mudança, pode-se prever que no futuro a comunidade internacional não permanecerá de braços cruzados ante situações de, por exemplo:
a) discriminação e perseguição a minorias étnicas, religiosas e raciais;
b) opressão à mulher;
c) crimes ambientais;
d) regimes autoritários;
e) repressão decorrente de divergências políticas e ideológicas;
f) guerra civil;
g) confrontos bélicos entre países, mesmo quando não afetam o resto do mundo.
Evidentemente, inúmeros perigos envolvem esse gênero de globalização. O maior deles é a probabilidade de ser aplicado apenas em relação aos países mais pobres e de menor poderio militar. Quem terá coragem de dar um puxão de orelha na China quando seu governo oprime a oposição? Quem se atreverá a inspecionar a incidência de discriminação ao negro nos Estados Unidos? Quem ousará ralhar com a Alemanha pelo fato de os imigrantes serem agredidos?
Outro risco provém das consequências indesejáveis de uma reinterpretação do conceito de soberania nacional. Facilmente esse novo padrão de soberania poderia ser usado como pretexto para atos que atentem contra os interesses de determinadas nações, ameaçando até mesmo a sua integridade territorial.
Uma forma de enfrentar esse perigos seria criando instituições internacionais fortes e imunes à hegemonia das potências do momento, onde houvesse um sistema decisório democrático, o que poderia ser alcançado através da revitalização da ONU.
Outra alternativa seria regionalizar a paulatina implantação do processo, iniciando-o naquelas áreas onde já existem acordos de integração econômica. De certa forma, isto já começou a acontecer no âmbito da União Européia e, timidamente, do Mercosul. Por exemplo: anos atrás, por ocasião de uma crise político-militar no Paraguai, os demais membros do Mercosul anunciaram que excluiriam o país do pacto comercial se o regime democrático fosse derrocado. Porém, em contradição com esse anúncio, recentemente o Mercosul acolheu a Venezuela de Hugo Chaves.
A internacionalização de assuntos político-sociais domésticos é algo tão arriscado e, até mesmo, utópico que seria ingenuidade acreditar na sua aplicação a médio prazo. Mas existem sinais de que não será necessário esperar o próximo milênio para vê-la em vigência.
Voltando ao caso específico da intervenção na Líbia, podemos também encará-la sob a seguinte ótica: esse gênero de ação, agora viável apenas em países militarmente débeis, talvez crie condições para, em um futuro não remoto, os regimes autoritários de países poderosos se sentirem constrangidos, por questões de imagem, em agredir suas populações.
Vale a pena ler Noam Chomski que trata com lucidez sobre esses assuntos: naçoes arrogantes, soberania nacional, invasao de territórios, genocídios, etc. No mais, o sonho é antigo, tao antigo quanto distante da realidade enquanto houver a cegueira conveniente e arrogância de hoje.