Nem sempre é tarefa fácil avaliar a postura da política fiscal. Não basta olhar para o resultado fiscal em si para saber se a postura do governo é expansionista ou contracionista pois receitas e despesas se alteram em resposta ao estado da economia. Em períodos de expansão é comum que a arrecadação cresça mais, enquanto na recessão observa-se o oposto. Assim, sem alguma informação acerca do momento do ciclo econômico, o simples valor do balanço fiscal pode levar a conclusões equivocadas acerca do caráter da política.
Não se trata, porém, de problema incontornável. Nos EUA o Congressional Budget Office calcula, além dos números observados, estimativas do saldo fiscal sob a hipótese de a economia estar operando a pleno potencial. Em 2009, por exemplo, o déficit fiscal americano observado atingiu 9,3% do PIB; já a estimativa do saldo ciclicamente ajustado foi algo inferior, 7,3% do PIB, refletindo a queda da arrecadação por conta da recessão e o aumento de algumas despesas, como o seguro-desemprego.
Essa resposta de despesas e receitas às mudanças cíclicas é conhecida como “estabilizador automático”: o aumento natural do déficit fiscal em períodos recessivos tende a minorar a recessão, enquanto sua redução em momentos de crescimento mais forte ajuda a atenuar a própria expansão.
No Brasil não há estimativas consistentes do resultado orçamentário ciclicamente ajustado, o que prejudica a avaliação da política fiscal. É possível, por exemplo, afirmar que a queda do superávit primário de 2009 representou uma política contracíclica ou seria apenas decorrência da redução brusca da atividade econômica?
Embora a resposta definitiva requeira um estudo mais aprofundado, minhas estimativas sugerem que a política fiscal não foi contracíclica em 2009. Indicam, contudo, que as decisões de aumento de gastos tomadas no ano passado e materializadas em 2010 teriam implicado uma redução persistente do superávit primário, ou seja, uma política fiscal fortemente expansionista para este ano e provavelmente também os próximos.
O gráfico mostra a relação entre o superávit primário do setor público consolidado (no eixo vertical) e uma medida do ciclo econômico, o hiato do produto industrial (no eixo horizontal). O superávit primário é o registrado na primeira metade de cada ano, aproveitando a divulgação recente do resultado do primeiro semestre de 2010 (caso usássemos o superávit acumulado nos 12 meses terminados até junho os resultados seriam muito parecidos). Já o hiato resulta da aplicação de um filtro estatístico simples na série trimestral de produção industrial até o final de 2007 e, a partir daí, uma extrapolação da tendência até o segundo trimestre deste ano.
Não é necessário um salto de imaginação para concluir que o resultado fiscal tende a variar com o nível de atividade de forma bastante regular. Assim, em 2008, quando a economia estava fortemente aquecida, o saldo primário no primeiro semestre atingiu seu recorde (5,6% do PIB); em contraste, em 2009, o superávit do primeiro trimestre havia se reduzido para 2,4% do PIB, sob efeito de um hiato bastante negativo.
A relativa estabilidade das observações de 2000 a 2009, entendida como uma distância moderada entre o valor observado e o sugerido pela linha de tendência, representaria, portanto, um regime estável de política fiscal. Em outras palavras, o resultado primário consolidado seria explicado, em larga medida (embora não exclusivamente), pelos estabilizadores automáticos.
Neste sentido, a queda do superávit registrada em 2009 não representaria uma quebra de regime, mas teria decorrido da retração econômica. Apenas a arrecadação federal, medida a preços constantes, caiu quase R$ 26 bilhões na primeira metade de 2009 relativamente a 2008 (menos de 10% disto associado à redução do IPI sobre automóveis).
Por outro lado, o resultado do primeiro semestre de 2010 parece incongruente com o regime anterior. Apesar da recuperação da atividade e da arrecadação federal (R$ 43 bilhões) no primeiro semestre, o saldo primário se manteve inalterado, bem abaixo do nível que deveria atingir com base na experiência dos últimos 10 anos. Interpretado literalmente, isso indicaria uma expansão fiscal da ordem de 2,5% do PIB no semestre (1,5% do PIB em 12 meses). De forma menos literal, a mera manutenção do mesmo nível de superávit primário a despeito da rápida expansão do produto é sintoma de política fiscal consideravelmente mais expansiva.
A gestão da política fiscal não se esgota na importante questão da solvência pública, mas se insere no quadro geral de manejo da demanda. Se há pouca razão para preocupação quanto ao primeiro tema, há motivos de sobra, como se vê, no que se refere ao segundo.
Fonte: Jornal “Valor Econômico” – 05/08/2010
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