* Por Pedro Cavalcanti Ferreira & Renato Fragelli
Em recente entrevista, o candidato Ciro Gomes, quando questionado a respeito de suas ideias sobre políticas monetária e cambial, afirmou que a taxa de câmbio precisa ser administrada a fim de assegurar a competitividade da indústria nacional, e o Banco Central deve visar o pleno emprego. Em seguida, foi categórico: “O Banco Central do Brasil será subordinado a mim”. O comentário reflete uma visão arraigada entre políticos, sobretudo de esquerda, que consideram a independência operacional do Bacen uma ameaça à autoridade presidencial.
Mas não é só à esquerda que o tema gera incompreensões. A primeira tentativa brasileira de implantar um Banco Central independente ocorreu durante o governo Castello Branco. A lei que criou a instituição previa mandatos fixos para seus diretores, no intuito de garantir a continuidade na política monetária por diferentes governos. Entre 1964 e 1967, a inflação caiu de 90% ao ano para o patamar de 20%. Entretanto, num país em que lei pode pegar ou não, a experiência foi curta.
Em seu livro de memórias, Roberto Campos relata a conversa que teve com Costa e Silva, dois meses antes de sua posse, a respeito dos capítulos econômicos da Constituição de 1967. Ao sugerir ao futuro presidente que pusesse termo aos boatos de substituição do presidente do Banco Central, visto que a lei lhe assegurava mandato fixo, o ministro acrescentou: “O Bacen é o guardião da moeda”. Interpretando o comentário como uma petulante tentativa de monitoramento por um simples técnico, o general respondeu-lhe de pronto: “O guardião da moeda sou eu”. A partir desse momento, o Bacen deixou de ser um incômodo obcecado com o controle da inflação, passando a “cooperar” com o crescimento. Mas a inflação interrompeu sua trajetória de queda, posteriormente voltando a subir até a atingir a hiperinflação.
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Têm toda razão aqueles que afirmam que tecnocratas sem voto não devem ter carta branca para definir livremente a política monetária. Afinal, sendo a taxa de inflação um imposto incidente sobre a retenção de moeda, somente políticos eleitos têm legítima delegação popular para definir sua alíquota. Esse é exatamente o princípio do regime de metas para a inflação. Os representantes eleitos decidem qual será a meta de inflação, bem como a faixa de flutuação em torno dela. Aos técnicos do Bacen cabe apenas a tarefa de cumprir diligentemente a ordem recebida, devendo ser exonerados caso fracassem na tarefa.
Ao defender a manutenção da taxa de câmbio num nível considerado adequado pelo governo e exportadores, Ciro citou a China como exemplo de sucesso nessa empreitada. É preciso compreender, entretanto, por que a China consegue administrar sua taxa de câmbio, sem comprometer o controle da inflação, enquanto o Brasil não. A explicação está na enorme diferença entre as taxas de poupança doméstica dos dois países: a brasileira é de apenas 15% do PIB, enquanto a chinesa, de quase 50%.
Quando o banco central de um país decide desvalorizar a taxa de câmbio, ele compra dólares dos exportadores, elevando as reservas internacionais, o que gera como contrapartida uma emissão monetária de igual montante. Para que esta não provoque pressão inflacionária, o banco central vende títulos que retiram de circulação a moeda emitida. Num país com alta taxa de poupança doméstica, a colocação dos títulos encontra inúmeros compradores, não havendo quase necessidade de se elevar a taxa de juros, nem de encurtar prazos de vencimento. Os dólares são aplicados pelo banco central em títulos internacionais, que geram os juros usados para remunerar os poupadores que compraram os títulos domésticos usados na neutralização dos dólares.
No Brasil, os títulos que neutralizam o impacto monetário da compra de dólares só encontram compradores se houver uma elevação da taxa de juros ou encurtamento de prazos. Neste momento, o Bacen possui cerca de R$ 1,1 trilhão – 18% do PIB, mais do triplo da base monetária – em operações compromissadas. Estas são títulos de prazo médio curtíssimo – 20 dias -, dos quais metade resultam da elevação das reservas internacionais a partir de 2006. O Bacen brasileiro, conforme indicam esses números, não tem condições de determinar a taxa de câmbio, podendo apenas amortecer oscilações abruptas mediante intervenções com swaps e venda de linhas de câmbio.
A experiência traumática do governo Dilma Rousseff mostrou que, quando o Bacen passa a ter outros objetivos além do cumprimento da meta de inflação, a inconsistência de suas tarefas gera apenas perda de sua credibilidade. O resultado é uma inflação crescente, sem manutenção de câmbio competitivo ou geração de mais empregos.
Há que se lembrar também que a desvalorização cambial reduz o salário real do trabalhador e piora a distribuição de renda. Embora esse fato raramente seja lembrado, o livro Macroeconomia Desenvolvimentista, de coautoria de um dos principais assessores de Ciro, Nelson Marconi, traz em seu capítulo 16 uma proposta (voluntarista e bastante inocente) de negociar essa perda com os trabalhadores. Ciro não é o único candidato a defender controle cambial. O PT vem repetindo o mesmo tema. Seria proveitoso e mais honesto que ambas as candidaturas discutissem os dois pontos – desvalorização do câmbio e perda salarial – simultaneamente, em vez de abordar apenas o primeiro deles.
O eleito em outubro precisará concentrar sua atenção em usar o capital político obtido nas urnas para aprovar a mais importante das reformas, a da previdência, medida que elevaria gradualmente a taxa de poupança doméstica. Será atuando sobre as causas, e não sobre sintomas, que se poderá recolocar o país nos trilhos.
Fonte: “Valor Econômico”, 19/09/2018