O porta-voz do PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol) e prefeito de Valladolid, Óscar Puente, declarou que, a seu ver, há na Espanha “um superdimensionamento” do que ocorre na Venezuela, porque quando um país vive o drama que a nação bolivariana experimenta aquilo não é só culpa de um Governo, mas “responsabilidade coletiva dos venezuelanos”.
Tal afirmação demonstra uma total ignorância da tragédia que a Venezuela vive ou um fanatismo ideológico quadriculado. É preciso de mais de um indivíduo para desonrar um partido, sem dúvida, sobretudo havendo socialistas que, com Felipe González à frente, têm demonstrado uma solidariedade tão ativa com os valentes democratas venezuelanos que, apesar dos assassinatos, das torturas e da repressão enlouquecida desatada por Maduro e seu bando governante, impediram até agora que o regime transforme esse país em uma segunda Cuba. Mas que, entre seus dirigentes atuais, haja na Espanha socialistas capazes de deformar de um modo tão extremo a realidade venezuelana, sem que sejam corrigidos e reprovados pela direção, é algo que delata o inquietante desvio de um partido que contribuiu de maneira tão decisiva para a democratização da Espanha depois da Transição.
A verdade é que a Venezuela foi, por quarenta anos, uma democracia exemplar e um país muito próspero ao qual imigrantes de todo o mundo acorriam em busca de trabalho, e tanto os Governos adecos [do partido AD] como os copeianos [do partido COPEI] travaram uma batalha sem quartel contra as ditaduras que ainda então prosperavam no restante da América Latina. O presidente Rómulo Betancourt tentou convencer os Governos democráticos do continente a romperem relações diplomáticas e comerciais com todas as tiranias militares e populistas, e as submeterem a um boicote sistemático, a fim de acelerar sua queda. Não foi respaldado na época, mas, várias décadas depois, sua generosa iniciativa acaba de ser postulada pela Declaração de Lima, na qual, convidados pelo Peru, todos os grandes países da América Latina – entre eles Brasil, Argentina, México, Colômbia, Chile, Uruguai e outros cinco nações da região –, além dos Estados Unidos, Canadá, Itália e Alemanha, decidiram isolar a ditadura de Maduro e não reconhecer as decisões da espúria Assembleia Constituinte com a qual o regime vem tentando substituir o Parlamento legítimo onde a oposição detém a maioria das cadeiras.
O porta-voz socialista não parece tampouco ter se inteirado de que as Nações Unidas denunciaram, por meio de seu Alto Comissariado para os Direitos Humanos, as torturas às quais a ditadura venezuelana vem submetendo os opositores há vários meses, que incluem choques elétricos, espancamentos sistemáticos, muitas horas pendurados pelos pulsos, asfixia com gases, estupros, além de detenções arbitrárias e invasão e destruição das residências dos suspeitos de colaborar com a oposição. Mais de 5.000 pessoas foram detidas sem serem levadas aos tribunais, as forças de segurança assassinaram meia centena nas últimas manifestações, e os bandos de delinquentes chamados de coletivos do regime, 27.
Ao menos dois milhões de pessoas emigraram pressionadas pelo terror, a insegurança e a pobreza
O assédio sistemático aos adversários da ditadura se estende, claro está, a suas famílias, que perdem seu trabalho, são discriminadas nos racionamentos de comida e vítimas de nacionalizações e expropriações. Mas, provavelmente, com toda a crueldade que denotam estas violações a direitos humanos que são hoje o pão de cada dia para dezenas de milhares de infelizes venezuelanos, nada disto seja tão terrível como o empobrecimento vertiginoso que a política econômica insensata de Chávez e seu herdeiro causou ao povo venezuelano em seu conjunto. Um dos países mais ricos do mundo, que deveria ter os níveis de vida da Suécia ou Suíça, padece hoje em dia dos índices de sobrevivência das mais empobrecidas nações africanas: a pobreza afeta 83% da população. As façanhas do chavismo são sofrer a inflação mais alta do mundo – prevê-se para este ano que alcançará 720% – e um PIB que, segundo o Fundo Monetário Internacional, cai 7,4%, ou seja, ser uma sociedade onde os únicos que se livram da fome e da escassez de praticamente tudo, começando pelos remédios e as divisas e terminando pelo papel higiênico, são um punhado de privilegiados da nomenclatura, incluindo aí um bom número de generais – a Venezuela tem mais generais que os Estados Unidos, e um bom número deles foi comprado ao receberem a incumbência de gerir as grandes operações do narcotráfico –, que pode adquirir alimentos, remédios, provisões, roupa, etc., a preços de ouro, no mercado negro. A gente comum e normal, entretanto, vê seu nível de vida cair dia após dia.
Quantas centenas de milhares de venezuelanos os malfeitos econômicos e sociais do regime obrigaram a emigrar? É muito difícil averiguar com exatidão, mas os cálculos falam de pelo menos dois milhões de pessoas que, agoniadas com a insegurança, a pobreza, o terror, a fome e a sinistra perspectiva de uma piora da crise, se esparramaram pelo vasto mundo em busca de melhores condições de vida ou, pelo menos, de um pouco mais de liberdade.
Não há precedentes na história da América Latina de um país que a demagogia estatista e coletivista de um Governo tenha destruído econômica e socialmente, como ocorreu na Venezuela. O extraordinário é que a política de destruir as empresas privadas, agigantando o setor público como que afetado por uma elefantíase, e pondo cada vez mais travas ao investimento estrangeiro, foi levada a cabo quando todo o mundo socialista, da desaparecida URSS à China, do Vietnã a Cuba, começava a dar marcha à ré, depois do fracasso econômico catastrófico da socialização forçada da economia. Que ideia passou pela cabeça de semelhantes ignorantes? A utopia do paraíso socialista, uma fabulação que, pelo visto, apesar de todos os desmentidos que a realidade lhe inflige, sempre volta a levantar a cabeça e seduzir massas ingênuas, que, depois, serão as primeiras vítimas desse erro.
É verdade que a Venezuela da democracia contra a qual se rebelou o comandante Chávez havia sido vítima da corrupção e que, na abundância de recursos daqueles anos – os da Venezuela saudita –, surgiram fortunas ilícitas à sombra do poder. Mas aquilo tinha reparo dentro da legalidade democrática e, de qualquer modo, os eleitores podiam punir os governantes corruptos mediante eleições, que na época eram livres. Agora não mais, pois são manipuladas por um regime que, nas últimas, por exemplo, inventou um milhão de votos a mais do que obteve, segundo a própria empresa contratada para verificar a votação. Apesar disso, a oposição inscreveu candidatos para as eleições regionais de governadores convocadas por Maduro. Há alguma possibilidade de que sejam eleições de verdade, em que o mais votado ganhe? Creio que não e, claro, nada me agradaria tanto quanto estar enganado. Mas, depois da grotesca balela da “eleição” da Assembleia Constituinte e da defenestração manu militari da procuradora-geral Ortega Díaz, alguém acredita que Maduro é capaz de se deixar derrotar nas urnas? Ele fez todos os embustes eleitorais, tirando a máscara e mostrando a verdadeira condição autoritária do regime, precisamente porque sabe que tem contra si a maioria do país. Na triste situação à qual a Venezuela chegou é pouco menos que impossível – a menos que haja uma fratura traumática do próprio regime – que recupere a democracia de maneira pacífica, por meio de eleições limpas.
Fonte: “El País”, 27/08/2017.
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