Joseph Napolitan, estrategista da campanha de JFK à Presidência dos EUA em 1961 – e considerados por muitos “o pai do marketing político” – ensina à pagina 35 do seminal “The emotional answer” (‘A resposta emocional’, ainda sem tradução para o Português): “A vitória eleitoral nem sempre se traduz em vitória política. De fato, as mais contundentes vitórias políticas que assisti ocorreram em meio a uma contagem de votos desfavorável. O frenesi liberado pela vitória nas urnas – sempre bem vinda, por certo! – costuma ofuscar o significado mais profundo, permanente e politicamente relevante do certame: que lado terá de lidar com as expectativas frustradas. (…) Sempre trabalho para vencer politicamente. A vitória eleitoral é uma consequência eventual. Lembre-se: as boletas de contagem vão ao fogo. As emoções perduram.”
Estivesse vivo em 26 de setembro, Napolitan observaria o abrir das urnas em Caracas, Venezuela, com o discreto e sereno sorriso dos visionários. É certo que não poderia entender completamente o significado de tanto alvoroço e celebração entre os “perdedores” (afinal, estamos em terras latino-americanas, o continente que produziu o “realismo fantástico” e as “escolas de samba”…). Mas sentiria, com toda a capacidade inspiratória de suas formidáveis narinas, o cheiro de esperança no ar.
Encerrada a contagem dos votos na eleição geral para a Assembleia Nacional Bolivariana, o governo do comandante Chávez viu suas expectativas frustradas. A despeito das 95 cadeiras conquistadas por seu Partido Socialista Unificado da Venezuela – PSUV (correspondentes a 60% de um total de 165) contra 61 a serem ocupadas pela oposição organizada na Mesa de Unidade Democrática – MUD (e outras 9 para os independentes), a maioria qualificada de 2/3 que permitiria “avançar com as reformas constitucionais que seguiriam levando o país em processo revolucionário permanente, em direção ao Socialismo do Século XXI” escorreu pelo ralo.
Para aprovar qualquer coisa relevante que não signifique “comer pelas beiradas”, Chávez terá de negociar acordos políticos transitórios ou uma agenda mínima permanente com aqueles que costumava designar por “inimigos do povo”, “traidores da Pátria” e “marionetes do império yankee”.
Fiel ao estilo, na noite do dia posterior, “El comandante” apresentou-se no canal estatal para cantar vitória, assegurando que a revolução segue firme. Nas ruas, nos jornais da manhã e nos canais independentes, o boato que corria solto era outro: haveria clima político para um “referendo revocatório” de imediato?
A vitória política da oposição só não foi maior porque o sistema político venezuelano – assim como o brasileiro – padece do mal do desequilíbrio de proporcionalidade na representação parlamentar; incutido em sistema distrital do tipo misto: os distritos de mais baixa densidade populacional situados nas áreas rurais dos Estados menos populosos do país, redutos de movimento chavistas, detém um número de cadeiras a ocupar muito maior que a proporção do eleitorado local no total de votantes.
Com mapas das votações majoritárias anteriores em mãos, os chavistas instalados no Conselho Nacional Eleitoral reesquadrinharam os limites dos distritos eleitorais em novembro de 2009 e aprovaram a nova conformação em janeiro de 2010, em tempo hábil para o pleito de 26 de setembro: distritos com maioria de votos opositores foram reduzidos para que detivessem um menor número menor de vagas na Assembleia Nacional ou fusionados com zonas chavistas de modo a produzir uma divisão potencial dos assentos entre governo e oposição. A despeito das manobras, o PSUV obteve 20% menos do número de cadeiras que pretendia, perdendo 55% de sua bancada desde a última eleição parlamentar onde concorreu sem adversário.
De “olho nos números que não apareceram nos canais oficiais”, o velho Napolitan diria que, à rigor, à rigor – desconsiderado os distritos e o sistema de representação proporcional – a vitória oposicionista foi também ”eleitoral”: 52% dos eleitores do país votaram em candidatos da Mesa da Unidade Democrática (MUD), contra 48% de votos a favor do Governo (números estes pouco mais elevados que o nível de aprovação a Chávez imediatamente anterior a eleição). Nunca tantos eleitores foram as urnas expressar-se através de votos.
O tropeço da revolução não limitou-se a lugar geográfico ou classe social específica. O PSUV enfraqueceu-se mesmo nos redutos chavistas mais radicais da capital Caracas.
Em San Cristóbal (capital do Estado de Táchira, junto à fronteira com a Colômbia), onde a classe média e pequenos comerciantes sofrem com epidemia do sequestro e com a cobrança semanal de proteção (“coima”) perpetrada pelas FARCs instaladas na região com a conivência do governo central, quatro dos cinco deputados eleitos são do bloco opositor.
Creio que Napolitan concordaria quando afirmo que a democracia venezuelana – modelo de estabilidade para os países do continente em outros tempos – voltou aos seus melhores dias.
Se em 26 de setembro os venezuelanos trataram de produzir um daqueles pontos de inflexão da História cuja importância somente se pode entender com clareza anos mais tarde, resta saber se a esta inflexão seguirá a queda.
O caminho à frente é longo e acidentado. A boa notícia é que, ao contrário do passado recente, resta-lhe apenas a alternativa de seguir em frente, em três firmes e decididos passos:
Tarefa primeira, a oposição terá de traduzir a frágil aliança eleitoral (“colada com saliva” segundo o jornal “El Universal” do dia seguinte) em uma coalizão parlamentar homogênea que ofereça um sistema de pesos e contrapesos efetivos à “revolução sem freios” do Governo e capaz de resistir ao esforço de cooptação que será implementado pelo mesmo.
Segundo, terá de criar ao longo dos próximos dois anos um projeto próprio e um discurso alternativo à miragem do chamado Socialismo do Século XXI. Tal projeto não poderá afastar-se do combate político à “revolução chavista,” mas fracassará no nascedouro se limitar a definir-se exclusivamente por seu contrário.
Terceiro, haverá de buscar um mensageiro capaz de formular uma visão positiva, ampla, inovadora e generosa do país, situada para além da polarização hoje presente; e também capaz de aglutinar forças políticas descontentes de todos os setores políticos e sociais – incluindo dissidentes atuais e futuros do presente modelo. Terá ainda que convencer aos 5,7 milhões de eleitores (quase 32% do total) que permaneceram em casa no dia da eleição a caminhar até a urna mais próxima para manifestar-se, de modo ainda mais contundente.
Esta nova liderança de oposição terá de ser construída junto aos movimentos sociais que arregimentaram fileiras nos protestos estudantis de 2008, e entusiasmá-los novamente. Há de ter a cara de uma nova Venezuela (despida dos refundacionismos tolos de V, VI ou VII Repúblicas); e carisma capaz de fazer sombra ao coronel fanfarrão e sua boina vermelha.
Não é, portanto, tarefa que se deixe para depois. A hora é agora. A eleição de 26 de setembro pode ter sido apenas um pequeno tropeço. Também pode ser o “começo do fim”…
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