Vejam que momentosa passagem mensal. No dia 22 de março, a Assembleia Legislativa de Juiz de Fora concedeu-me, pelas mãos do vereador do PT, Wanderson Castelar, o título de cidadão honorário da cidade que – nos anos 50 – testemunhou, com a indiferença típica de toda malha urbana – malha cujo anonimato permitiu que Pedro negasse Cristo três vezes e que esconde dos seus habitantes suas razões e demandas – os meus passos em direção ao mundo. Pois fui a Juiz de Fora aos 11 anos e – depois de um interregno em São João Nepomuceno e em Niterói (onde nasci) – a ela retornei com minha vasta experiência de nada vezes nada aos 14, dela saindo aos 17 anos para terminar o curso científico em Niterói, onde moro até hoje.
Que diferença fez esse tempo? Recordei isso quando recebi o diploma que me facultava nascer de novo naquela cidade onde, eu menino, perambulava cheio de perguntas sem respostas. Meus pais: um baiano e uma amazonense, sempre foram ilustres desconhecidos. Mas eu, graças ao cinema, ao Colégio São José, aos discos de Doris Day, ao basquete no Sport Clube Juiz de Fora e ao Mauricio Macedo e à sua esposa Quiquita; à irmandade do Naninho, à minha namorada Zelinha, ao Mauricinho e ao Mario Assis e; em Nepomuceno, à família Mendonça Vianna, tornei-me um nativo. Meus pais não viraram mineiros, mas eu acabei sendo um mulato cultural ao menos no basquete, nos bailes e nas paixões que confundiam cinema e realidade.
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Dias depois, segui para Fortaleza onde, a convite do Instituto de Estudos e Pesquisas do Estado do Ceará, falei sobre a anticidadania no trânsito na Assembleia Legislativa que, em Fortaleza, faz algo inédito: ouve as pessoas. Abri um seminário internacional sobre Cidade, Mobilidade e Felicidade falando do meu livro sobre o comportamento no trânsito, o Fé em Deus e Pé na Tábua, onde ressalto a nossa patológica alergia à igualdade nas ruas, nos sinais e nas longas filas de carros engarrafados esfregam nas nossas caras, deixando-nos loucos de raiva. Mostrei como temos muito mais afinidade com o desigual, o aristocrático e o hierárquico do que com o igual que exige tratar o outro com o devido respeito e uma consideração reservada apenas a quem devemos favores.
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Após uma noite em São Paulo onde, na Fnac, e depois do meu seminário sobre Teorias do Brasil na PUC, falei dos dilemas brasileiros, voei para Lisboa.
Já no avião da TAP, no dia 29, reencontro a hierarquia portuguesa na forma de um serviço impecável, mas formalíssimo e sem uísque. E já enfrento os erres rascantes e as palavras que ficam pelo meio, tornando as frases ininteligíveis para nós, brasileiros.
Férias? Passeio? Compras?
Nada disso. Viajo para participar de um colóquio sobre Gilberto Freyre, organizado pela fundação emblemada pelo seu nome, graças ao convite de Sonia Freyre Pimentel. Após a bela conferência de abertura do historiador de Cambridge, Peter Burke, sobre o luso-tropicalismo de Freyre no contexto das teorias pós-coloniais, mergulho na magnífica experiência das várias e intensas discussões da obra de Freyre mas, desta feita, realizadas – à exceção de uma brilhante comunicação de Maria Lucia Pallares Burke – sob o ângulo português, uma perspectiva que oscila fortemente entre o Gilberto Freyre lusófono, que viaja pelas colônias de Portugal a convite de Salazar; e o Gilberto Freyre que nos legou interpretações antecipatórias deste nosso mundo globalizado e tão carente de abraços, mais do que de informações e horrores.
Curioso ouvir uma língua que é a minha, sem entender nada. Maravilhoso ver os olhares de surpresa dos colegas lusos quando terminei a minha conferência de encerramento do encontro, pois o Gilberto Freyre do Brasil de hoje não é obviamente o mesmo que não li na universidade porque ele era um autor reacionário e constava de um índex do qual, tempos depois, eu também fiz parte.
No meio do segundo dia, fiquei tão confuso que perguntei que língua estávamos a falar e um amigo me olhou com aquela visada que ilumina os loucos varridos. Serei sempre devedor dessa experiência de revisitar Gilberto Freyre em Lisboa. Um raro autor imune à leitura desapaixonada, pois que é sempre discutido com rejeição ou admiração, jamais indiferença. No meu caso particular, com uma imensa inveja pelo que ele sabia do Brasil como morada.
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Minas Gerais, Ceará, São Paulo e Lisboa em poucos dias. O cronista abusa de movimentação.
Ledo engano.
Pois durante todo esse tempo eu não viajava, mas excursionava entre regressos e reencontros. Minha verdadeira viagem era para dentro de minha vida por meio da vida de Isaac Singer. Pois durante todo o tempo eu lia e relia Amor e Exílio. E assim misturei Juiz de Fora com a Polônia, São Paulo e Fortaleza com a diáspora, e Gilberto Freyre e Lisboa com a Cabala, as sinagogas e a cosmologia judaica. Durante todo tempo, eu fazia a pergunta que ronda a obra de Singer e permeia o seu livro: o que diferencia um ser humano de outros, como explicar o sofrimento e evitá-lo, o medo do tédio é tão grande ou maior do que o da morte… E, mais além, eis por onde tenho andado, caros amigos: que todos somos neuróticos, contraditórios e loucos. Queremos o conflito e a serenidade, o pertencer e a mais pura liberdade, o gozar e a culpa. Essa é a viajem que fiz e ainda estou fazendo para dentro de mim mesmo – não em aviões, mas com os livros.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 07/04/2011
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