Vamos imaginar que, no filme do ajuste fiscal, a União seja o mocinho e os Estados, os vilões. O governo criou, por volta de 2000, uma camisa de força em que os Estados: 1) assinariam contratos dando-lhe o direito de invadir suas contas bancárias em caso do não pagamento em dia das prestações das dívidas por ele refinanciadas; 2) teriam de submeter antes ao Ministério da Fazenda qualquer pleito de empréstimo.
Havia o compromisso implícito de que a União produzisse superávits fiscais elevados e os Estados participassem com o equivalente a 26% do esforço total, como de fato ocorreu até 2013.
Contudo, ao se aproximar a campanha eleitoral de 2013, o governo Dilma chutou o ajuste fiscal para o alto e, na sequência, liberou as amarras existentes para os Estados se endividarem. Também em campanha eleitoral, vários deles assumiram novas dívidas em grande escala. Meros departamentos da União, ficam apenas na expectativa de uma brecha que a matriz lhes ofereça para gastar mais.
Só que não foi devidamente considerado que, diante do fracasso da política centrada em menores saldos fiscais, câmbio depreciado e juros artificialmente baixos, o governo iria provocar a pior recessão de nossa história. E que a queda resultante na arrecadação, somada a outros fatores, provocaria déficits elevados tanto na União como na maioria dos Estados.
Diante das últimas eleições, o governo Dilma tentou esconder esse fato (recordem-se as famosas “pedaladas”), mas em 2015 teve de explicitar um gigantesco déficit primário de R$ 115 bilhões. Um país com gastos públicos rígidos como o nosso não pode se dar o luxo de brincar com experimentos de política econômica, aumentando o risco de recessão. Como o gasto federal cresce pelo menos a 6% ao ano acima da inflação, se a economia não subir no mínimo 4%, surge uma crise fiscal. Com a maquininha de emitir moeda do Banco Central à mão, foi fácil para a União financiar seus déficits, sem precisar atrasar salários de servidores e desativar serviços que, mesmo ineficientes, podem ser essenciais à população.
Para os Estados mais precavidos, o quadro à frente pode ser difícil, mas no curto prazo talvez não seja preciso dar calote em funcionários. Já para os demais, há casos dramáticos, como o do Rio de Janeiro, onde, agravado pelo petróleo, o buraco anunciado para este ano é da ordem de R$ 20 bilhões, e por enquanto não há como financiá-lo. O noticiário mostra diariamente imagens dramáticas de serviços públicos básicos que vão sendo desativados às vésperas da Olimpíada. Por mais que a gestão recente de muitos tenha sido temerária, a difícil situação de Estados como o Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Distrito Federal não pode igualmente ser ignorada.
Decididamente, o governo não quer que haja tratamento isonômico. Tem descumprido acordos até com governadores aliados, quando, ao contrário do combinado, foi concedido um reajuste ao piso dos professores, que a maioria não consegue pagar. Da mesma forma, o governo descumpriu a promessa de incluir os Estados nos beneficiários da arrecadação da nova CPMF. Por último, acenou com novo alívio no pagamento das dívidas subnacionais, mas este é insuficiente para tirar os mais desajustados do precipício. De que adianta mexer nessa casa de marimbondo sem resolver o problema?
Desculpem-me os colegas que caem de unhas e dentes sobre os pedidos de liminares dos Estados que encontraram uma brecha na redação da Lei Complementar 148 e se credenciam para pressionar o governo a negociar uma solução em outras bases. Achar que os Estados não percebem que o cálculo de juros simples é inviável é subestimar sua capacidade. Usar esse caminho para negociar em favor de um tratamento isonômico no enfrentamento da crise atual pode fazer sentido, principalmente quando se vê que o maior vilão dessa história é o próprio governo. Cabe, agora, uma discussão de mérito mais profunda para, numa negociação mais equilibrada entre as partes envolvidas, chegar às melhores soluções para as respectivas populações sem quebrar o País.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 14/04/2016.
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