Por que o livro de um jovem economista francês provocou tamanho rebuliço na imprensa e nos centros globais de poder? Como Thomas Piketty e seu “Capital no Século XXI” conseguiram seduzir Obama e a comunidade internacional, fazendo do livro um dos mais citados no Google, esgotando a tiragem da Amazon? Economistas laureados dos dois lados do espectro ideológico, gente da estatura do clássico Robert Solow e do keynesiano Paul Krugman, escreveram fartas e elogiosas resenhas sobre a obra de Piketty. De onde vem a inusitada exaltação, inimaginável no Brasil dividido que não enxerga mérito em argumentos contrários à visão de quem os contesta? O próprio autor fornece a resposta. Para os amantes da literatura do século XIX, para os leitores de Balzac e Zola, ficando apenas com os naturalistas franceses conterrâneos de Piketty, o interesse não é surpresa. Afinal, há tema mais engagé e empolgante, assunto que arrebata o leitor e que o arrasta pelas entranhas, do que o maniqueísmo atrelado a uma boa discussão sobre a desigualdade da riqueza?
A miséria dos trabalhadores das minas francesas retratada em “Germinal”, a luta ingrata do homem de classe média pela glória e pela fama, imortalizada no Lucien Chardon de “Ilusões perdidas”. O desespero de milhões de desempregados no mundo pós-crise, os jovens desalentados, aqueles que jamais tornar-se-ão os futuros Tim Cook da Apple. A desconstrução do american dream, minuciosamente documentada nos dados levantados por Piketty e seus coautores, eis a fórmula do sucesso, assim é que se faz um best-seller de economia. Um best-seller realista, na melhor tradição literária do século XIX, livro que fala do quadro de baixo crescimento global resultante da crise, quadro esse que conosco permanecerá. Obra que aborda sem rodeios o tema das grandes fortunas construídas no período de maior euforia dos mercados, estoque que não é desgastado pela economia global modorrenta, muito pelo contrário.
A tese central de Piketty é simples: quando a remuneração da riqueza (do “capital”) excede o crescimento econômico, a desigualdade aumenta, os ricos ficam mais ricos, a classe média e os menos abastados ficam para trás. Na melhor das hipóteses, permanecem estagnados. A descoberta parece óbvia e é isso que tanto a favorece. Como outras grandes descobertas, sua força reside precisamente em não ter sido vista antes, embora estivesse em ampla evidência. É a obviedade no melhor sentido do termo, aquela que tem profundidade. Infelizmente, aqui nas nossas bandas do Sul, a força do argumento foi ignorada pelos opinativos de sempre para que se pudesse desmantelá-lo de forma superficial. Não, a recomendação de instituir um imposto sobre o capital que a tantos deixou de cabelo em pé não é o ponto alto do livro, está longe de ser a maior contribuição da obra de Piketty.
Interessante mesmo é a regularidade empírica por ele desvelada, essa de que, quando as economias crescem pouco, os mais abastados é que se saem bem. Corolário disso é que, tudo mais constante, a remuneração da riqueza é tanto maior quanto menor for a inflação, quanto mais achatados forem os salários. Afinal, não há inflação sem pressão salarial, a conhecida espiral salários-preços. Quando há deflação, o efeito das quedas de preço sobre a riqueza é ainda mais forte. Pensem no Japão, cuja evolução do estoque de riqueza mais do que compensa a falta de crescimento das últimas décadas.
A deflação, ou a perspectiva de uma inflação persistentemente baixa, assombra o mundo. O debate macroeconômico nos EUA, na Europa, no Japão, no Reino Unido, está, em maior ou menor grau, influenciado por isso. A inflação é um bicho esquisito. Quando é baixa demais, aumenta a desigualdade num torvelinho vicioso; quando alta demais, também. Enquanto o mundo se engalfinha com o aumento da desigualdade associado à falta de crescimento e à estagnação dos salários, o Brasil enfrenta o estrangulamento econômico provocado por políticas desajustadas que soltaram as rédeas da inflação. O dilema brasileiro pode parecer o oposto do desafio mundial, mas leva ao mesmo lugar: o aumento da disparidade da renda — no caso, proveniente da corrosão dos rendimentos da classe média pela alta excessiva dos preços.
No Brasil, dizem que “a inflação é o âmago do debate”. Frase brilhante não fosse ela a expressão da mais rasteira obviedade. A inflação é sempre o âmago do debate, não só no Brasil. Os contornos do debate brasileiro são apenas diferentes, nem mais, nem menos importantes por isso. Que a inflação brasileira é resultado de políticas mal concebidas e de estratégias torpes não se discute. Ou melhor, discute-se à exaustão, o que dá no mesmo. Como debelá-la, salientando para a população em geral que esse é o desafio para reduzir a desigualdade e dar novo impulso ao processo de inclusão social, eis a tarefa dos presidenciáveis, esses que, até agora, preferem apenas apontar o dedo. O maniqueísmo é mais fácil, além de render boas manchetes para os jornais.
O livro instigante de Thomas Piketty prenuncia o advento de sociedades movidas, sobretudo, pelas fortunas herdadas, a débâcle da meritocracia. Escreve Balzac em “Ilusões perdidas”: “Por isso, quanto mais medíocre é alguém, mais depressa sobe; pode resignar-se a tudo, bajular as paixõezinhas baixas (…)”.
É o retrato desse Brasil brasileiro, tão século XIX.
Fonte: O Globo
Excelente post !!!