A pergunta chegou num pedaço de folha de caderno mal dobrado. O coordenador do debate a leu em voz alta, para que o convidado respondesse. Na Sala dos Estudantes, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, com todas as poltronas ocupadas, a plateia aglomerava-se como podia. Uns se postavam de pé, apoiados nas paredes, outros se recostavam nos vitrôs, ao fundo, e os menos afortunados se sentavam nos degraus do chão.
A lotação fervilhante não se resumia ao auditório. No palco, atrás da mesa comprida e pesada em que o palestrante e os debatedores se acomodavam, algumas dezenas de assessores, aspones e ajudantes das mais diversas especializações cerravam fileiras compactas, inquietas, nervosas. Ao centro de tudo, no papel um tanto cômico de caricatura de si mesmo, Jânio Quadros cintilava como atração de circo político. Como ele explicaria a vida confortável que levava? Ninguém piscava no recinto.
Estávamos no início da década de 1980, no ocaso da ditadura militar, e o ex-presidente da República, figura folclórica desde sempre, ensaiava sua volta às urnas (em 1985 seria eleito prefeito da cidade de São Paulo). Era um personagem em plena campanha, embora ainda não se soubesse exatamente a que cargo ou por qual partido. Os aspones, assessores e cabos eleitorais de sua buliçosa comitiva não deixavam dúvidas a respeito: ali estava um candidato. A quê? Ora, isso era o de menos, depois se veria.
Ex-aluno da Faculdade, Jânio divertia-se com as perguntas, como se estivesse entre colegas. Não economizava nas piadas e nos esganiçamentos vocais que eram sua marca registrada. Estava à vontade.
Mas ao se ver indagado sobre seus proventos, sobre como ele se sustentava, mudou de expressão. Repuxou o queixo para dentro do pescoço enquanto as sobrancelhas se projetavam para cima dos óculos, num esgar misterioso. Num suspense teatral, bem ao seu gosto, emudeceu. Estaria incomodado? Ofendido? Ultrajado?
O velho homem percorreu os olhos sobre a audiência e continuou calado. O batalhão de aduladores, ao fundo, rumorejava. Pareciam querer explicitar indignação. Como alguém poderia ousar pôr em dúvida a honestidade do presidente?
Jânio Quadros prolongou o silêncio ainda mais, com seus contorcionismos faciais indecifráveis. Então, levou a mão direita ao bolso interno do seu paletó e de lá puxou um insuspeitado maço de cigarros. Jânio fumava? Eu, pelo menos, que já tinha notícias de sua predileção pelos líquidos, não sabia dele fumante. Estranhei o gesto. Estranhei aquele recurso retórico ao tabaco, mas a cena toda funcionava magistralmente. Jânio tinha domínio total do público. A tensão aumentava.
Com movimentos pausados, o ex-presidente puxou um cigarro do maço e o levou a boca. De repente, seus cabos eleitorais (eram todos homens e eram todos velhos, aos nossos olhos juvenis) sacaram isqueiros dos interstícios de suas vestes anacrônicas. Eram isqueiros de todas as cores e de todos os modelos. Rápidos no gatilho, acenderam todos ao mesmo tempo. Num instante mágico, Jânio Quadros ficou emoldurado por uma auréola de dez, vinte, trinta chamas amarelinhas sustentadas por aqueles tipos humanos solícitos e anedóticos – uns com brilhantina no cabelo, outros com a barba por fazer, uns com camisa estampadas e colarinhos que abanavam por cima do blazer cansado, outros com jaqueta de plástico – que se curvavam numa reverência de trás para a frente, sorrindo horrivelmente ao desejo de seu senhor.
Em sua pausa genial, em que deixava a oratória para mergulhar na mímica, Jânio olhou ao seu redor, com o cigarrinho entre o polegar e o indicador da mão direita e aí, só aí, lançou um olhar sardônico para a audiência magnetizada por tão inesperada coreografia. Passou então as chamas em revista com seus olhos discrepantes. Escolheu calmamente uma delas, tocou-a com ponta do seu cigarro e nele brotou a brasa incandescente. Puxou a fumaça. Ato reflexo, os outros isqueiros se apagaram e voltaram para os bolsos de onde tinham saído. O ex-presidente, soberano, tirou o cigarro da boca, voltou o corpo na direção do microfone, enquanto soltava a baforada que o envolveu numa nuvem seca e acinzentada. Só então se reconciliou com a palavra. E falou, com aquela sua prosódia inconfundível: “Priecieso riesponder?”.
Entre focos de aplauso aqui e ali, todo mundo riu, mas os aspones riram com mais gosto. Gargalharam vitoriosamente. A cena ensaiada que, depois me diriam, o palestrante repetia em quase todas as suas aparições públicas, tinha surtido o efeito esperado. O recado tinha sido passado sem que Jânio tivesse de dizer uma única palavra: o próprio sustento não era problema para ele. A sobrevivência era assunto resolvido. Bastava ele fazer menção de que queria fumar e, numa fração de segundo, dezenas de mãos se apresentavam para oferecer-lhe fogo. O conforto material não era algo com que tivesse de se preocupar. Outros se ocupariam disso em seu lugar, para que lhe restassem tempo e energia para se dedicar com mais afinco ao Brasil, ao povo, à pátria, à sociedade, à causa nacional, você sabe.
Para mim e para meus amigos do movimento estudantil, a mensagem era bizarra. Não deixava de ser repulsivo, por mais que fosse engraçado, que um político se envaidecesse de viver de favores anônimos. Jânio orgulhava-se de um modo de vida que nos envergonharia. Mas dávamos de ombros. Não havia muito o que fazer quanto a isso. Estávamos diante de um conflito de gerações, vamos pôr as coisas nesses termos. Ele era o passado. Ele que ficasse com esse tipo de receita às antigas. O futuro seria diferente. Com certeza absoluta. No futuro, esse tipo de promiscuidade seria página virada. A gente não tinha a menor dúvida – e esse foi um dos enganos esfumaçados que nos nublavam a visão naquele começo de década.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 18/02/2016.
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