Após chegar ao Brasil, Dom João VI, em oito anos, distribuiu mais títulos nobiliárquicos do que em todos os 300 anos anteriores da Monarquia Portuguesa. Um título de barão, conde ou duque abria portas nos altos escalões da sociedade. Nem todos tinham intimidade com o Rei, mas ser amigo de amigos do Rei já era um valioso passaporte para o mundo dos negócios e os favores da Corte. Os nobres eram reverenciados e achavam-se superiores. Daí à soberba foi um passo. A prepotência e a intenção de subjugar o interlocutor gerou a infame pergunta: “Você sabe com quem está falando?”.
Lembrei-me da Corte e dos nobres tupiniquins quando da instauração do já batizado “inquérito fake”, no estilo “prendo e arrebento” da época da ditadura. Sem objeto delimitado, sem que os fatos (sejam eles quais forem) tenham ocorrido na sede do Supremo Tribunal Federal (STF), com relator indicado (sem sorteio) e tocado à revelia do Ministério Público Federal (MPF), o STF se colocou como vítima, investigador, acusador e juiz. Na minha opinião, investigação inconstitucional que tem por essência a intimidação de procuradores, jornalistas e movimentos sociais. A indagação da vez é: “Vocês sabem de quem estão falando?”. Sem considerar a aloprada – felizmente já revogada – incursão pela censura. Na prática, o inquérito tirano não intimida, e sim, envergonha. Com respeito à Suprema Corte, rasguem-no!
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A banda de rock mineira, “Pense”, criou música e letra para a pergunta, “Você sabe com quem está falando?”. Em um trecho, alerta: “Esse é o discurso pra te por pra baixo com medo e culpa; mas só causa efeito quando se acredita na falácia de quem te julga. Não fique calado, não se acovarde, essa é nossa luta! Somos aqueles que ainda acreditam na mudança de consciência”.
Muitas autoridades, porém, não têm consciência e não querem qualquer mudança. Abusam e servem-se do Poder. Como mostrou O Globo, na Câmara dos Deputados, novas excelências mantêm velhos hábitos. Até março, já tinham sido concedidos 155 passaportes diplomáticos, dos quais 78 para parlamentares e 77 para seus filhos e cônjuges, sem qualquer ônus, diga-se de passagem. Se considerados os passaportes emitidos em anos anteriores ainda válidos, existem 917 documentos nas mãos de deputados e de seus parentes. O Ministério das Relações Exteriores afirma que há em vigor uma portaria de 2011 que restringe a emissão de passaportes para familiares de deputados. Imaginem o que estaria acontecendo se a portaria não estivesse vigente…
Os mandatos ainda estão no início, mas os deputados já gastaram quase R$ 5 milhões para divulgar suas “realizações”. Contrataram serviços de marketing digital, publicações em sites, jornais e revistas, além da confecção de panfletos e informativos. O valor é maior do que os R$ 4,8 milhões pagos até março para “Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais”.
Voltando às viagens, em 2015 foi editado decreto para impedir a ida e volta dos ministros e autoridades às suas residências, nos aviões da Força Aérea Brasileira, nos fins de semana, lembram-se? Não vingou. Entre maio de 2016 e março de 2017, o MPF constatou que dos 781 transportes realizados, 238 tiveram como destino/origem as cidades de residência dos ministros/autoridades, com a justificativa de necessidade de “segurança” e “serviço”. Dizem que há brecha no decreto.
No rol de abusos, o governador de Brasília, Ibaneis Rocha, editou, há 15 dias, decreto instituindo uma “carteira funcional digital”, para a cúpula do governo. No caso do próprio governador e do seu vice, também eram beneficiados parentes até o segundo grau. A “carteirada” oficial de filhos, avós e netos, ridicularizada na imprensa e nas redes sociais, foi revogada.
Enfim, desde o Império convivemos com os privilégios e a empáfia de alguns “nobres”. A pergunta intimidadora, “Você sabe com quem está falando?” perdura há séculos. Mas a sociedade brasileira está acordando e já começa a enfrentar aqueles que se imaginam acima do bem e do mal com uma pergunta simples: Quem você pensa que é?
Fonte: “O Globo”, 23/04/2019