Peter Evans escreveu, em 1979, que as empresas estatais no Brasil da ditadura militar funcionavam como elos indispensáveis para os negócios das multinacionais. Mas mesmo ele se surpreenderia com a notícia da transferência líquida e direta de recursos da Petrobras para a belga Astra Oil na transação da refinaria de Pasadena. Os detalhes, que começam a emergir, descortinam uma hipótese “benigna”, de incompetência crassa de Dilma Rousseff e da diretoria da Petrobras, e uma maligna, fácil de imaginar. Abaixo da superfície, porém, o episódio lança luz sobre um tema político crucial: o tórrido amor da esquerda brasileira pelas empresas estatais.
É um amor recente –ou melhor, um renascimento recente da chama extinta de uma paixão antiga. Evans, sociólogo americano de esquerda, publicou “A Tríplice Aliança” no outono da ditadura militar. O livro analisa a articulação do capitalismo de Estado brasileiro, de Getúlio Vargas a Ernesto Geisel. Nele, delineiam-se os contornos do tripé formado por estatais, multinacionais e empresas privadas nacionais que sustentou a modernização econômica do país. As estatais, prova o autor, operavam como alavancas da acumulação de capital privado, subsidiando as multinacionais e as empresas privadas de grande porte. A crítica de esquerda ao modelo econômico do regime militar inspirou-se largamente no estudo de Evans.
Três décadas atrás, a esquerda brasileira não era estatista. Confrontada com o modelo da “tríplice aliança”, que alcançara o zênite nos anos de Geisel, a esquerda aprendeu que as estatais não representavam um “patrimônio do povo” –nem, muito menos, um degrau na escada utópica que conduziria ao socialismo. A vertente social-democrata, fixada nas ideias de democracia e de combate às desigualdades, pensava o futuro em termos de direitos sociais universais (salários, educação, saúde). A vertente revolucionária, por sua vez, almejava a destruição de um capitalismo que andava sobre as próteses das empresas estatais. As duas sorriam, ironicamente, diante dos nostálgicos do varguismo, apontando as linhas de continuidade entre o nacionalismo populista e o modelo estatista do regime militar.
A paixão reativada pelas estatais é um indício, entre outros, da regressão política e intelectual da esquerda brasileira. O amor à Petrobras –que corresponde, no plano iconográfico, à associação das imagens de Vargas e Lula– revela uma dupla renúncia: à revolução socialista e ao horizonte democrático de universalização de direitos sociais. No lugar daquelas metas de um passado esquecido, a esquerda entrega-se a um projeto restauracionista que obedece a razões de poder. No capitalismo de estado, descobriu o lulopetismo em sua jornada rumo ao Palácio, as estatais oferecem ao governo as chaves de comando da política e da economia.
O amor recente às estatais é uma história de conveniência, não de paixão ideológica. Do ponto de vista do lulopetismo, as estatais funcionam como portas de entrada na esfera das altas finanças. Controlando mercados, formando parcerias de negócios ou adquirindo equipamentos, elas fornecem as ferramentas para a subordinação do empresariado ao governo. Servem, ainda, como porto seguro para aliados políticos e como nexos entre a militância partidária/sindical e a tecnoburocracia estatal. Finalmente, operam nas catacumbas da baixa política, transferindo recursos a empresas de publicidade selecionadas, financiando “movimentos sociais” e pagando os serviços baratos do “jornalismo” chapa-branca.
É um amor que mata. Dilma, a gerente perfeita (ui!), já desviou R$ 15 bilhões do Tesouro para cobrir o rombo que abriu no setor elétrico. A Petrobras, com produção estagnada e eficiência declinante, vive de aportes multibilionários do BNDES –isto é, no fim, nossos. Pasadena? US$ 1,1 bilhão? Dinheiro de troco.
Fonte: Folha de S. Paulo, 22/03/2014
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