Desde que o Brasil voltou a ser presidido por um ser humano comum, a partir de janeiro de 2011, uma porção de coisas começou a mudar no mundo que gira em torno do governo. É pouco tempo, ainda, para saber melhor o que vem por aí, mas já existe um clima diferente – a começar pela sensação de pausa na neurastenia permanente produzida pelo ex-presidente da República durante os oito anos em que ocupou o cargo. É um alívio: desde que Dilma Rousseff assumiu, não é mais preciso ouvir, todo santo dia, quanto o Brasil deve a seu presidente etc. A mudança que parece chamar mais atenção, porém, é que o país voltou a ter na Presidência uma pessoa que trabalha. Dilma comparece ao serviço todos os dias. Tem uma agenda de atividades a executar. Não passa seu tempo dentro do Aerolula, ou fazendo discurso, ou comandando homenagens a si própria. Despacha com os ministros. Faz cobranças; não vai logo engolindo a primeira desculpa que lhe dão. Marca reuniões nas sextas-feiras, para os auxiliares não engordarem o fim de semana com um dia a mais.
É verdade que, com vários dos ministros que a nova presidente escolheu para o seu governo, tanto faz – não há reunião, com esses ai que possa resultar em algo de bom para o serviço público. Mas é certo que, depois de oito anos seguidos, voltou-se a trabalhar no Planalto. Já é uma boa coisa.
Para todos os que se preocupam com as ameaças que a privatização pode trazer para o patrimônio público deste país: solicitam-se alguns momentos de sua atenção para uma curta história que pode resultar, caso seu desfecho seja o desejado por dinâmicos ases do mercado imobiliário paulistano e alguns altos funcionários da prefeitura de São Paulo, numa verdadeira pérola na coleção de parcerias através das quais, ao fim de muito passe de mágica e outros esforços, bens que pertencem a todos acabam aparecendo no Registro de Imóveis, um belo dia, como propriedade particular de meia dúzia de cidadãos. No caso, trata-se de um terreno de 20 000 metros quadrados que o município possui num dos pontos mais caros do Itaim, bairro classe A “plus” de São Paulo, e que se transformou no objeto de uma possível troca com incorporadores de imóveis da capital. Que troca poderia ser essa? Uma troca do tipo clássico, quando se cruzam homens de negócios e agentes do poder público. A prefeitura entrega um terreno que já existe, e que todo mundo pode ver no aqui e no agora, com localização precisa, dimensão exata e valor conhecido no mercado. Seus verdadeiros proprietários, a população da cidade, ficam com uma promessa para o futuro.
A área em questão não é um terreno baldio, um desses espaços que as prefeituras chamam de “praça” e que servem para juntar mato e entulho: já funcionam ali, hoje, duas escolas, uma creche, um posto de saúde, uma biblioteca e um centro de atendimento para crianças excepcionais, conjunto a ser demolido, segundo os planos, para a construção de prédios de escritórios e apartamentos. Os recursos obtidos pela prefeitura na transação seriam utilizados na construção de até “200 creches”, segundo as esperanças da autoridade municipal. Resumo da história, se o negócio for fechado: é 100% certo que tanto os escritórios como os apartamentos serão construídos e vendidos; quanto às “200 creches”, infelizmente, não dá para garantir nada.
A situação poderia ficar bem mais clara. Naturalmente, se a prefeitura, antes de transferir essa propriedade de primeiríssima classe para os incorporadores, fornecesse aos paulistanos algumas informações que qualquer cidadão teria direito de receber num negócio desse tipo. Onde estão as escrituras dos 200 terrenos, um a um, nos quais serão construídas as creches? Em que lugares do município, exatamente, eles ficam? Quando será entregue a primeira creche do lote? Quando será entregue a última? Quais as dimensões precisas de cada uma delas? O que vai constar do memorial descritivo de cada construção? Onde está o plano de contratação e treinamento dos funcionários que esse mundo de creches vai exigir? Quem está pensando nos recursos necessários para o seu funcionamento? Não é pedir muito, claro. Também é claro que ninguém, dentro ou fora da prefeitura, tem a menor ideia a respeito disso tudo.
É uma pena, realmente, que a área em questão não faça parte daquele pedaço do patrimônio público que tem um bras no nome – o mundo encantado onde há funcionários, diretorias, conselhos de administração, fornecedores, clientes e tantos outros atrativos. Para este nunca faltam defensores.
Publicado na revista “Veja”
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