A velha música, cantada pelo grupo As meninas, é gostosa de ouvir: “Analisando essa cadeia hereditária, quero me livrar dessa situação precária, onde o rico cada vez fica mais rico e o pobre cada vez fica mais pobre. E o motivo todo mundo já conhece: é que o de cima sobe e o de baixo desce”. O que preocupa é que ela é atual. O relatório de desenvolvimento humano das Nações Unidas 2014, recém-publicado, mostra que a distribuição de renda do Brasil é uma das dez piores do mundo, com um coeficiente de Gini ajustado de 54,7, que é a medida de concentração mais usada. Reforça a percepção daquela canção.
O mesmo estudo calcula o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que é uma combinação de outros três: um de saúde, um de educação e outro de renda, e apresenta resultados para 187 países, apontando as melhorias em cada um deles, bem como outras informações.
Os progressos do indicador do Brasil foram fracos e a taxas decrescentes: avançaram 1,16 no período 1980-1990, 1,10 entre 1990 e 2000 e 0,67 de 2000 a 2013. No último ano, a melhoria foi de apenas 0,002, devagar quase parando.
Se o ritmo for mantido, o índice brasileiro demorará mais de 20 anos para alcançar o uruguaio, mais de 30 para o nível argentino e mais de 40 para o patamar chileno. Isso se, e só se, esses países pararem de melhorar seu IDH.
Independentemente do relatório e de sua metodologia, basta um olhar atento para corroborar que a concentração de renda e de oportunidades é realidade no Brasil: as favelas não estão encolhendo e indicadores de pobreza são abundantes nas cidades.
Há avanços, sim, mas são tímidos. É inconcebível que, num país com tantas oportunidades como o Brasil e com um povo tão generoso, essa situação perdure. É um problema antigo, que vem desde a época das capitanias hereditárias, que centralizavam o poder econômico e político no capitão-mor.
O viés regressivo foi observado nos ciclos agrícolas posteriores e na política de industrialização privilegiando grandes grupos. Apesar de avanços, o modelo econômico vigente estimula a concentração, e os casos da educação e da tributação ilustram o ponto. Os dispêndios com um aluno de uma universidade pública são, em média, 12 vezes maiores do que com um aluno do ciclo básico. Todavia, recusa-se a cobrar do estudante do ensino superior, que faz parte de uma minoria seleta e, em grande número, com capacidade de pagar por seus estudos.
Agravando o quadro, boa parte dos recursos para custear a educação superior gratuita vem do ICMS, um imposto em que as classes mais baixas contribuem proporcionalmente mais. O resultado é que os mais pobres pagam pela educação dos mais ricos.
O viés concentrador na estrutura tributária é forte. Permite que os mais ricos contribuam proporcionalmente menos do que os pobres e os impostos oneram mais a horizontalização da produção, favorecendo grandes empresas verticalizadas. Note-se que a concentração empresarial é maior do que a de renda no Brasil.
A tributação do crédito é outro exemplo emblemático, incide mais por real emprestado quanto menor for a operação e onera a reestruturação de empréstimos. O uso do imposto inflacionário, que é regressivo, para financiar o déficit público também serve para ilustrar a questão.
Enfim, tanto a educação como a tributação contribuem para que o rico fique cada vez mais rico e o pobre, cada vez mais pobre. Há mais fatores com esse viés.
O tema concentração é a principal bandeira do governo federal, cujo slogan é “Brasil – país rico é país sem pobreza”. É meritório que assim seja, entretanto, a estratégia de “vamos dividir o bolo, é uma questão de justiça social” é fraca em dois aspectos.
O primeiro é que a visão de país rico é estática e está associada a uma abundância de bens, que acaba quando o estoque se esgota. Ilustrando o ponto: quando acabaram o ciclo da borracha e o do ouro, o bem-estar social associado a eles definhou. O Brasil é um país rico, mas tem de se tornar mais próspero, um conceito dinâmico que se refere à capacidade de gerar bens e de autoperpetuar essa condição.
Um segundo ponto no slogan é a ordem de causação. Os países mais desenvolvidos formularam políticas para aumentar a inserção produtiva, e dessa forma impulsionaram o crescimento. Eles têm um nível de renda alta porque fomentaram a inclusão. Além de ser uma questão de justiça social, é também um fator de desenvolvimento sustentável fundamental. A evidência empírica é esmagadora nesse sentido. Não há um único país avançado que não tenha adotado políticas de inclusão produtiva para crescer.
São duas as teorias para promover o bem-estar: a “do bolo”, em que o crescimento antecede a distribuição, que é feita por uma questão de justiça social; e a “da mão na massa”, que prega que, havendo mais gente produzindo, há mais bolinhos para serem repartidos. Urge mudar.
A agenda do paradigma de inserção produtiva é extensa e inclui melhorias na educação, revogação de privilégios, crédito responsável, tributação progressiva, desburocratização, mobilidade, inclusão digital, Judiciário mais célere, Previdência mais justa e microempreendedorismo. O objetivo é criar um círculo virtuoso de incorporação da base da pirâmide social, aumentando sua produtividade para ter mais crescimento. Gerando mais recursos para promover mais inclusão. Isso diminuiria a dependência do assistencialismo, que sempre terá um papel a cumprir.
A desigualdade é um tópico presente no debate nacional por uma questão de justiça social, e o ponto deste artigo é que ela deve ser adotada pelo seu impacto no desenvolvimento.
Fica a proposta de mudar o slogan de “Brasil – país rico é país sem pobreza” para “Brasil – país que inclui é país próspero”. Manter a estratégia de distribuir o bolo, mas dando ênfase à de fazer com que mais gente ponha a mão na massa. Mais bolinhos para todos!
Fonte: O Estado de S.Paulo, 25/04/2014.
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