A construção da cidadania iniciou-se tardiamente no Brasil. Em uma sociedade escravocrata e com domínio da oligarquia rural na estrutura econômica e social do País até 1930, não havia espaço para liberdades individuais e participação social ampla na esfera pública.
Além de tardia, a cidadania teve evolução muito lenta, por conta dos ciclos autoritários que marcaram nossa história, quando as liberdades de expressão e de mobilização eram suprimidas.
Da mesma forma que o ambiente era pouco propício à cidadania, o era também para a educação de massas. A ausência de educação básica universal até a década de 1990 é, ao mesmo tempo, reflexo e agravante da cidadania incipiente.
Esse quadro não impediu as várias revoltas populares em nossa história, que eram reprimidas com violência, sendo que o longo período militar deixou marcas. A repressão pode ter contribuído para uma sociedade pouco inclinada à reivindicação.
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O resultado é que prevalecem os interesses de grupos organizados na agenda política, enquanto preserva-se muitas vezes o equilíbrio social com populismo e paternalismo. Uma combinação que impede o maior crescimento econômico.
As novas gerações, beneficiadas pela conectividade digital, têm desafiado a “velha ordem” e anseiam por maior participação política – ainda que por vezes as reivindicações sejam injustas. Essa foi a lição dos protestos de 2013.
A crise atual cria um ambiente mais propenso a reivindicações. O distanciamento social e a volta da economia contribuem para a população dar o benefício da dúvida aos governos. Talvez não por muito tempo. A crise ceifa oportunidades de trabalho e de desenvolvimento, gerando insatisfação.
Temas que antes eram pouco presentes no debate público têm ganhado evidências e geram indignação. É o caso das regras que regem o serviço público, com benefícios não disponíveis ao trabalhador do setor privado. A pesquisa Exame-ideia mostra que 34% dos entrevistados são contra a estabilidade do funcionalismo. Predominam os que são a favor (52%), mas 34% não é pouco, posto que é um debate recente. Além disso, 53% são a favor de a reforma administrativa proposta pelo governo valer também para os atuais servidores, e não apenas para futuros concursados.
Enquanto isso, organizações que representam os servidores públicos mostram-se indiferentes ao sofrimento da população. Falta espírito público a um grupo que deveria servir à sociedade e que conta com estabilidade de emprego e renda.
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Os sindicatos de professores recusam o retorno das aulas presenciais, deixando de lado os estudantes e os responsáveis que voltam ao trabalho e sofrem por não ter como cuidar dos filhos. Para a Apeoesp, que representa os professores da rede pública de São Paulo, “voltar às escolas é genocídio” e “o não retorno às aulas presenciais é inegociável”. Deveriam estar discutindo como retomar as aulas presenciais com segurança.
Muitos médicos peritos do INSS relutam em voltar ao trabalho. A associação que os representa, ANMP, obteve uma vitória na Justiça Federal, que suspendeu o retorno presencial, o que impede o governo de cortar o ponto dos faltosos.
Dezenas de sindicatos de servidores se unem contra a reforma administrativa governo. Muitos se acreditam especiais, enquanto o governo falha em sua comunicação.
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A elite do funcionalismo, principalmente do sistema judiciário, tem conseguido preservar e até criar novos privilégios. O Ministério Público Federal obteve aprovação para contornar a regra do teto e garantir recursos para o auxílio-moradia. E juízes poderão receber mais 1/3 do salário ao assumir estoque de processos que aguardam julgamento.
Não seria justo generalizar. Não faltam servidores zelosos de suas responsabilidades, sendo que há grande desigualdade de renda dentro do serviço público. As lideranças do funcionalismo, no entanto, precisam buscar o diálogo honesto e resgatar o espírito do serviço público. Na intransigência, não estão protegendo a quem representam. Estão, sim, provocando a ira dos contribuintes.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 24/9/2020
Foto: Marcello Casal JrAgência Brasil