Autor de uma proposta de reforma da Previdência, o economista Helio Zylberstajn, pesquisador da Fipe (Fundação Instituo de Pesquisas Econômicas), defende a inclusão de todas as categorias na reforma previdenciária com a unificação das regras. Sem isso, ele avalia que o governo pode perder apoio para a aprovação da reforma. “Se não incluir os militares, será que dá para chamar de uma reforma dura?”, questiona em entrevista ao Estadão/Broadcast.
Ele afirma ainda que a unificação das regras e a criação de um novo sistema para os futuros segurados, por meio da capitalização (segundo a qual se contribui para uma conta individual que bancará os benefícios futuros), já seriam avanços importantes, mesmo que o impacto da proposta não seja tão profundo. O pesquisador diz ainda que o governo precisa mostrar que a reforma será boa para os pobres, pois vai exigir dos mais ricos a idade mínima de aposentadoria que, na prática, já se aplica aos menos favorecidos. Confira os principais trechos da entrevista:
Estadão: Como o sr. está vendo a articulação do governo para apresentar a reforma da Previdência?
Zylberstajn: Na verdade, a gente não sabe direito se vai ser uma reforma dura. As informações estão bem contraditórias. Por exemplo, se não incluir os militares, será que dá para chamar de uma reforma dura? É difícil afirmar qualquer coisa. A outra parte, da capitalização, pelo que a gente tem ouvido, não é exatamente uma capitalização, porque estariam pensando em destinar parte do que se arrecada para o INSS e iria para contas individuais que seriam operadas numa plataforma tipo Tesouro Direto. É uma capitalização estatizada, que não vai sair do caixa do governo. Quando falamos de capitalização, imagina-se extrair todas as vantagens do sistema de capitalização. A principal delas é que tem que ser sistema privado para a pessoa poder escolher planos de previdência complementar, escolher onde aplicar os recursos, de que forma, para obter rendimento maior.
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Estadão: É importante abarcar todas as categorias na reforma, sem exceção?
Zylberstajn: Se a reforma não incluir todos, ela perde força e perde apoio popular. Acho que a grande força da proposta seria incluir todos, todos bancariam uma parte da conta. Se você começa a dizer ‘esse não, esse paga menos’, ela perde força, ela perde apoio. A ideia é que ele teria que unificar todas as categorias dentro dos mesmos critérios, isso é que daria força à reforma.
Estadão: Tem o argumento de que os militares têm regras próprias em todos os países…
Zylberstajn: Eles sempre foram uma categoria à parte. Acho que o País está chegando a um estágio em que seria interessante que tivéssemos um regime unificado para todos os brasileiros.
Estadão: Uma reforma que abarque todas as categorias pode, por outro lado, ampliar a pressão contrária à reforma?
Zylberstajn: Sim, você tem razão. O que tem atrapalhado a reforma, em todas as tentativas, é justamente a ideia de fazer tudo de uma única vez. Mas aí é um dilema difícil de resolver, porque se fatia a reforma, pode ser mais fácil de emplacar cada fatia. Temos que lembrar que cada fatia vai resultar numa PEC (Proposta de Emenda à Constituição). Aí teria que mobilizar o Congresso três ou quatro vezes para fazer reforma na Constituição, o que é uma coisa difícil. Talvez o mais importante na reforma seja a estratégia, não tanto só a comunicação. Por isso que nós, na Fipe, temos proposto que a reforma deveria começar pela criação de um sistema novo para os novos trabalhadores. Esse deveria ser um primeiro passo, pois teria pouca resistência. E aí os passos seguintes seriam unificar o que ficou para trás, tentando unificar regras de quem já está aposentado e de quem ainda vai se aposentar.
Estadão: Em termos de comunicação, vimos que o ex-presidente Michel Temer enfrentou muitos mitos sendo usados contra a reforma. O que o sr. recomendaria ao governo para evitar a repetição desse script?
Zylberstajn: A grande ideia que o governo deveria tentar passar é que reforma vai beneficiar o mais pobre. Isso ficou meio escondido na reforma Temer, e ela tinha esse lado. Se o governo conseguir passar essa ideia, acho que as outras coisas ficam mais fáceis.
Estadão: Por que o mais pobre será beneficiado pela reforma?
Zylberstajn: O pobre hoje já se aposenta por idade (60 anos para mulheres e 65 anos para homens). Quem é o trabalhador pobre? É o trabalhador que não conseguiu juntar 35 anos de trabalho com carteira, com contribuição. Então ele não consegue se aposentar por tempo de contribuição. Os não pobres passam a vida trabalhando com carteira, então eles se aposentam com 35 anos de contribuição, no caso da mulher, 30 anos, e no caso dos professores, menos ainda. Então os pobres têm que esperar mais para se aposentarem. À medida que a reforma imponha uma idade mínima para todos os brasileiros, ela está beneficiando o pobre, igualando a regra que ele já tem com a regra de todos os outros. Isso é muito difícil de explicar.
Estadão: Por quê?
Zylberstajn: É muito mais fácil destruir os argumentos do que construir um argumento como esse. Você destrói o argumento dizendo ‘é só cobrar os devedores’. É uma ideia tão simples, tão direta, tão fácil, enquanto a gente vai ficar meia hora explicando por que a reforma é boa para os pobres.
Estadão: Nesse sentido, a Medida Provisória com medidas antifraude ajuda nesse discurso?
Zylberstajn: Sim, eu achei muito interessante o que o governo está fazendo. Ele está começando a trabalhar contra esses argumentos enganosos.
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Estadão: O ministro Paulo Guedes tem mencionado uma espécie de plano B caso a reforma da Previdência não seja aprovada, que é a desvinculação e desindexação do Orçamento. É um plano B viável?
Zylberstajn: O argumento que ele usou foi interessante, vai ser um plano B (porque) se não passar a reforma da Previdência, vamos estar em uma situação insustentável do ponto de vista fiscal. Ela já está chegando, temos sete Estados em situação de calamidade financeira. Não vai faltar muito, o Brasil inteiro vai estar nesse estado de calamidade. Quando a gente estiver nesse estágio, essa ideia de desvincular vai ser a única solução. É isso mesmo. Governo vai ter que ter flexibilidade para alocar os recursos onde for mais necessário. Então vai precisar realmente desvincular. Achei muito interessante essa ideia de que é um plano B, só que é um plano B que ninguém quer.
Estadão: Qual é o custo para a sociedade desse plano B?
Zylberstajn: Nossa Constituição vinculou uma série de receitas. Por exemplo, alguns impostos e as contribuições sociais só podem ser direcionados à Seguridade Social. Numa situação de extrema gravidade, uma saída seria romper com essas vinculações. Isso daria algum grau de liberdade. (O custo) Vai depender do que vai ser desvinculado. Se o governo remanejar os gastos com educação e com saúde, nós vamos ter um prejuízo para a população nessas áreas, é verdade. Agora, se o governo decidir desvincular algumas contribuições sociais, talvez a gente sofra redução nos gastos sociais.
Estadão: Ficaria mais claro que é uma escolha?
Zylberstajn: Sim. E eu lembro que o Paulo Guedes disse que o Congresso teria que fazer essa escolha. E é interessante porque, nos países onde a democracia funciona mesmo, a função essencial do Legislativo é alocar os recursos. É decidir como vai gastar os recursos. De certa forma, a Constituição de 1988 deixou o Legislativo meio aleijado. Porque ela vinculou previamente uma série de receitas. Se amanhã o Legislativo quiser gastar menos com uma área que está vinculada e mais com outra que não está, ele não pode, teria que reformar a Constituição. O certo seria o Orçamento ser definido ano a ano. O próprio Legislativo amputou algumas de suas funções quando fez a Constituição e vinculou essa quantidade enorme de receitas.
Estadão: O sr. está otimista com as chances de aprovação da reforma?
Zylberstajn: Eu não conheço no detalhe a composição do novo Congresso, mas tenho a sensação de que nós avançamos muito na discussão sobre a necessidade da reforma. Evidente que vai haver resistências, mas acho que vai ser mais fácil para os parlamentares apoiarem uma reforma, pois a população hoje está mais convencida do que há dois anos. Se o Congresso age em função da opinião pública, nesse lado a decisão é mais fácil hoje. E acho que há outro aspecto: os governadores dessa vez podem ser utilizados a favor da reforma, eles precisam de uma reforma. Um dos erros que Temer cometeu logo no início foi retirar os Estados e municípios da reforma. Aí os governadores perderam qualquer motivação de mobilização. Acho que a reforma, ao incluir Estados e municípios, não só governo federal, os governadores vão ter motivação, para eles é melhor que o governo federal faça a reforma completa do que eles terem que brigar por uma reforma em cada Estado. Esse é um aspecto que pode ajudar. E estou mais otimista hoje do que estava há dois anos.
Estadão: Mas os Estados e municípios foram retirados porque os próprios entes argumentavam independência federativa…
Zylberstajn: Aí é o discurso dos corporativistas. Mas hoje a situação ficou tão mais grave que imagino que essas motivações vão ser superadas. A crise previdenciária já está nos Estados. Agora é só se agravar.
Estadão: O presidente Jair Bolsonaro chegou a falar em idades mínimas de 57 anos para mulheres e 62 anos para homens. Uma idade mínima menor que a proposta na reforma de Temer (62/65) já seria um avanço, ou o melhor é partir para uma reforma mais definitiva?
Zylberstajn: Foi numa entrevista, eu procurei ouvir aquela entrevista. A interpretação que se deu foi que não seria mais 65, mas também falou que aumentaria gradualmente até o fim do mandato. Eu acho que quando ele falou isso ele estava pensando na aposentadoria dos servidores públicos. Porque ele fala em aumentar a idade mínima, e quem tem idade mínima hoje é servidor público. Eu não entendi que isso valeria para o INSS. É claro que cada escolha tem um impacto fiscal diferente, mas acho que isso não é tão fundamental. O fundamental é fazer uma reforma, mesmo que não seja tão drástica. O que precisamos é que unifique os critérios e crie um novo sistema. Se o impacto for mais lento, tudo bem, acho que isso não é problema. O que precisamos mostrar é que estamos começando a dominar esse crescimento da despesa com a Previdência de alguma forma. Isso já mudaria o cenário, as pessoas passariam a confiar mais, e o crescimento voltaria mais rápido. Se o crescimento voltar, a arrecadação volta também e melhora o fiscal. Claro que quanto mais profunda, melhor. Mas se ela não for tão profunda, não vejo problema. Mas a ideia matriz de unificar todos não pode ser perdida. Porque se a reforma for fraca e preservar juízes, militares, Estados, aí realmente ela é uma reforma bem fraquinha e não cria um bom clima.
Fonte: “Estadão”