A palavra mais lida nos jornais é “corrupção”. Explodem escândalos vergonhosos em todos os níveis do governo. Todos falam de roubalheiras que vêm de “cima” para “baixo”, dos “governantes” que deveriam, pela nossa velha cartilha, dar o exemplo, para a sociedade. Eles não são apenas a herança do populismo lulista – um populismo de extraordinários resultados coletivos e privados, mas revelações de um sistema administrativo construído sobre uma contradição. Pois se o republicanismo que vem lá da Revolução Francesa se funda na igualdade perante a lei, o estilo brasileiro de exercer o poder é aristocrático e hierárquico.
Quem está mais longe do poder é sujeito da lei e quem o controla multiplica seus bens assaltando os recursos da sociedade impunemente e com a proteção (ou “blindagem”) governamental. É o descaso para com a igualdade republicana que está no fundo de todos esses escândalos claros ou velados e são eles que colocam em xeque o governo e, muito mais que isso, a nossa capacidade de honrar a democracia.
Sobretudo agora que vamos bater novamente de frente com o “mensalão”, essa vergonha de um partido que prometia transformar todos os costumes políticos nacionais, mas que demonstrou que o nosso problema é muito mais de atitude gerencial e de cuidado para com a coisa pública do que de mera figuração ideológica.
Nosso moinho satânico não é bem o capitalismo com suas mais-valias e seus monopólios, mas um Estado que troca o senso de limites pelas relações de amizade que se (con)fundem com os elos partidários. O tal governo de coalizão que sempre foi a marca da política nacional é hoje a carteira privilegiada de um clube onde se chega pelo individualismo e pela igualdade das disputas eleitorais, e tira vantagem através da desigualdade que caracteriza o exercício de uma administração centralizada num “Estado” que só sabe pensar em si mesmo. A nossa interpretação do liberalismo foi no sentido de transformar o seu individualismo em privilégio pessoal porque nele só enxergamos o lado dos direitos e das vantagens, esquecendo sua dimensão de dever, de honra e de responsabilidade. Dos limites e fronteiras que chegam mais pelo bom senso e pela boa-fé do que pela polícia, pelos tribunais e pelas leis.
O que falta nessa mixórdia não é discutir leis e inventar mais instituições e códigos de conduta, mas a discussão dessas inocentes pontes “naturais” e “humanas” entre gerentes públicos (prefeitos, governadores, ministros, reitores, diretores, presidentes, etc…) e administradores privados – todos enriquecendo brutalmente com o nosso dinheiro.
E o ponto central para realizar tal discussão é ter uma consciência cada vez mais clara de que quem produz os recursos e a riqueza é a sociedade. É o conjunto de pessoas que forma o tal “povo” que não é nem pobre ou rico, mas é comum no sentido de ser parte de um todo com interesses e valores coincidentes. Pertence a esse povo o dinheiro nacional, bem como a conduta dos seus gerentes, eleitos por tempo limitado. Eles não são os seus donos, mas os seus gerentes. Eles não têm o direito de fraudar esse povo em nome de sua libertação ou de sua miséria, mas a obrigação de honrá-lo com o gerenciamento eficiente e honesto dos seus recursos.
Só a consciência radical da igualdade perante a lei e a responsabilidade pública dela decorrente pode nos libertar desse embrulho ideológico mistificador no qual os governantes se apresentam como protetores, mães, pais e tios, primos e, no fundo, proxenetas do “povo”. Esse povo propositalmente confundido de modo imoral e populista com os “pobres” que precisam de um Deus no Céu e de nossa ação a seu favor na Terra. É entre ele e os projetos governamentais que brotam as mestiçagens do público com o privado – essas misturas que multiplicam bens num grau que escandalizaria um imperador romano.
Precisamos urgentemente de uma consciência de limites – essa irmã do bom senso. O bom senso sobre o qual Tom Paine, em pleno século 18, exortando a separação entre pessoa e papel num mundo novo, marcado pelo individualismo e pelo ideal de liberdade e igualdade, discutia. Tal conta de chegar entre pessoa (com seus interesses particulares) e papel público (que demanda isenção, equilíbrio e altruísmo). Sabemos como isso é complexo num país marcado pela desigualdade da escravidão, como bem viu Joaquim Nabuco. Mas sem essa consciência do que é público e do que é particular, não vamos alcançar o mínimo da responsabilidade pública demandada numa democracia representativa, pois ela depende dessa discussão daquilo que é suficiente para cada um de nós num sistema em que, aparentemente, o céu pode ser o limite – como exemplificam os nossos representantes (???) na esfera pública, sobretudo os que nos governam.
Termino com uma parábola.
Conta-se que numa reunião na mansão de um multimilionário americano, o escritor Kurt Vonnegut Jr. (autor, entre outros, do incrível “Matadouro 5”), perguntou ao seu colega Joseph Heller (autor do não menos perturbador e brilhante “Ardil 22”): “Joe, você não fica chateado sabendo que esse cara ganha mais num dia do que você jamais ganhou com a venda de “Ardil 22″ no mundo todo?”. Ao que Heller respondeu: “Não, porque eu tenho alguma coisa que esse cara não tem!”. Vonnegut olhou firme para ele e disse: “E o que você acha que pode ter que esse sujeito não tenha?”. Resposta do Heller: “Eu conheço o significado da palavra suficiente!”.
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