A referência jocosa aos nossos “11 supremos” tornou-se um mantra. E a crítica é ainda mais dura ao STF quando se trata de decisões controversas com placar apertado. O dissenso, no entanto, tem suas virtudes.
Nos EUA, também tem se falado muito de “nove tribunais separados”. A expressão é de Cass Sunstein, de Harvard. Mas, enquanto lá o dissenso é entendido frequentemente em registro positivo, aqui parece existir unanimidade em prol de decisões unânimes.
Os dois casos não são exatamente comparáveis: são tradições legais distintas (“civil law” versus “common law”), e há diferenças no formato institucional (a corte americana desde 1925 escolhe o seu “docket”, isto é, os casos que julga, que não chegam a cem por ano, ante quase 100 mil do STF). Os ministros brasileiros detêm enorme poder em decisões monocráticas que são fonte perene de crise e pedidos de vista etc. Mas as críticas se assemelham e o contraste entre as duas interpretações pode iluminar aspectos relevantes das consequências políticas do dissenso.
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Pamela Corley e Lee Epstein, da Universidade de Washington, examinaram dados de mais de dois séculos de decisões da Suprema Corte dos EUA (de 1801 a 2013) e mostram que há uma quebra estrutural na série temporal em 1941: até então, as decisões eram unânimes. Depois, o padrão é o dissenso.
Elas discutem explicações rivais para essa mudança. Recentemente, há decisões com margens de vitória de apenas um voto em muitos dos casos mais controversos, como o Gore versus Bush, sobre o resultado das eleições de 2000. Sunstein, em “Unanimity and Disagreement on the Supreme Court” (unanimidade e dissenso na suprema corte), examina os benefícios e custos e conclui que “os argumentos em prol de maior consenso têm bases empíricas e teóricas frágeis. [O dissenso] não compromete a corte ou presta desserviço à ordem constitucional”.
Esse é um debate entre juristas. Mas uma intuição derivada da observação da crise política no país é que o dissenso no âmbito do STF pode ser entendido não apenas em chave negativa. Se, por um lado, as decisões com placar apertado são recebidas como contendo um elemento de arbitrariedade, a divisão interna do STF gera, por outro lado, uma espécie de legitimidade prática. A enorme cacofonia individual não é desejável — muitas vezes é burlesca —, mas tem tido efeito positivo para a legitimidade política da corte em um contexto turbulento como o atual.
A pergunta contrafatual é qual seria o estado de coisas se as decisões da corte nos casos mais controversos tivessem sido unânimes, produzindo os mesmos perdedores. Em um contexto de forte polarização, seriam entendidas por parcelas ainda maiores da população como aceitáveis? Acredito que não. O vício pode assim ser fonte de virtude.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 23/10/2017.
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