Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS – 2013) revelam que apenas 39% das redes de esgoto são tratadas no Brasil. Segundo Kleber Luiz Zanchin, presidente Comissão de Estudos de Saneamento do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), a situação permanecerá assim enquanto não migrarmos do modelo estatal para a matriz privada de tratamento de água. O advogado e professor de direito do Insper está convencido de que a administração pública impede o avanço do país nessa agenda. A burocracia dos estados, a demora na aprovação de licenças e projetos, além da baixa qualidade dos mesmos, são os motivos que levaram Zanchin a defender a privatização das companhias de tratamento de esgoto. “A gente precisa mudar para um paradigma privado do saneamento. É deixar a iniciativa privada investir”, diz.
O Chile é um exemplo do sucesso do modelo de administração privada de saneamento básico, segundo Zanchin. “O sistema de saneamento do Chile é fundamentalmente privado. O Estado assumiu a função reguladora. O sistema está perfeitamente equilibrado lá. Nada comparado ao que temos no Brasil”, esclarece o advogado, que também identifica empreendimentos bem sucedidos no Brasil:
“A companhia de água do estado do Rio de Janeiro, a Cedae, fez uma concessão de esgoto concentrada nas favelas, chamada Área de Proteção Cinco (AP5). A princípio, pode parecer inviável um projeto desses nas favelas cariocas, no entanto, a empresa que ganhou a concessão não só aceitou o desafio como pagou uma outorga para a Cedae. O município de Niterói está próximo da universalização de água e esgoto através de uma concessão privada”, destaca.
Esses e outros aspectos, como o desafio das moradias irregulares para a universalização do acesso à água tratada no Brasil, são abordados na entrevista concedida pelo advogado ao Instituto Millenium. Leia:
Instituto Millenium: Saneamento básico foi uma conquista do século XIX em grande parte do mundo desenvolvido. Recentemente o jornal “O Globo” noticiou que mais da metade dos brasileiros não tem acesso à coleta e tratamento de esgoto. Um estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI) associou a falta de saneamento à burocracia, em vez da falta de recursos, como se costuma argumentar. O que a burocracia tem a ver com o tratamento da água?
Kleber Zanchin: O primeiro assunto relacionado à burocracia é a presença muito grande do Estado nesse segmento. O saneamento no Brasil é atendido majoritariamente pela administração pública, por meio dos departamentos de água e esgoto, por entidades autárquicas ou por empresas públicas municipais ou estaduais. A estatização remonta ao Plano Nacional de Saneamento da década de 70, durante a ditadura militar. O Estado tem limitações, especialmente na questão de contratações, que impedem que a coisa deslanche. A segunda questão são as licenças e aprovações dos projetos. Devido ao alto impacto ambiental, todos os projetos de saneamento precisam passar pelo licenciamento ambiental, bastante complexo no Brasil, por envolver instâncias municipais, estaduais e, às vezes, até federais. O terceiro ponto é a qualidade dos projetos. O Estado realiza a maioria dos projetos técnicos e financeiros. Muitas vezes eles não atendem às demandas da população.
Imil: A CNI propõe a simplificação do atual modelo de aprovação de projetos de tratamento de água. Atualmente, a liberação de financiamento federal para projetos de saneamento precisa de três aprovações diferentes: do Ministério das Cidades, do Comitê Gestor do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e da Caixa Econômica Federal. O senhor concorda com a proposta da CNI? Por quê?
Zanchin: Concordo. Tem que simplificar. O programa “Saneamento para todos”, financiado pela Caixa Econômica Federal, disponibiliza dinheiro subsidiado para projetos municipais e estaduais de saneamento. De fato, existe uma dificuldade de obter esses recursos, mas não é uma dificuldade extrema. Essa é uma questão mais profunda. O saneamento é competência municipal e, em alguns casos, estadual, portanto, não pode depender exclusivamente de recursos federais. A gente precisa redesenhar a forma de financiamento do saneamento para que o setor não dependa tanto dos recursos da União.
A estrutura jurídica brasileira prevê dispensas constitucionais obrigatórias com saúde e educação. Todo município é obrigado a gastar 15% da sua receita de imposto com saúde e 25% com educação. Saneamento é saúde. Se conseguirmos colocar o saneamento como uma despesa obrigatória, criaremos um fluxo de recursos para muitos projetos. Com isso, é possível chegar a bancos como a Caixa Econômica Federal, que empresta dinheiro mais barato. Esse é um dos caminhos. Outras coisas podem ser feitas para conseguir liberar recursos no nível municipal e não depender dos recursos do governo federal.
Imil: Quais são os outros caminhos para liberar os recursos?
Zanchin: Para mim, a coisa mais importante é uma reestruturação do sistema, tirando-o do Estado. A gente precisa mudar para um paradigma privado do saneamento, como fez o Chile. É deixar a iniciativa privada investir. O Estado deve assumir a posição de mediador e gestor do sistema. Enquanto nós tivermos o Estado como empreendedor, como operador, sempre vai faltar dinheiro porque a folha [de pagamentos] e as ineficiências do Estado consomem muito.
Imil: O senhor citou o Chile como um exemplo do sucesso da iniciativa privada no saneamento. O que o governo de Santiago fez que Brasília não fez?
Zanchin: O Chile tem um desafio hídrico gigante. É um país muito estreito com um deserto em uma ponta e uma cordilheira na outra. A dificuldade para obter água em um lugar com essas características geográficas é enorme. O Chile, assim como vários países da América do Sul, começou com um modelo estatal. Quando o país identificou o tamanho da ineficiência e a incapacidade de investimento no setor, migrou para um modelo de concessões, mantendo as empresas estatais. Em um segundo momento, o país privatizou as empresas. Hoje, o sistema de saneamento do Chile é fundamentalmente privado e o Estado assumiu a função reguladora. O sistema está perfeitamente equilibrado lá. Nada comparado ao que temos no Brasil.
Imil: Qual é o impacto do crescimento desordenado das cidades e do surgimento das moradias irregulares no saneamento básico?
Zanchin: A ocupação irregular da cidade é um problema estrutural para o saneamento e, também, um problema jurídico. Há dois tipos de irregularidades: as áreas urbanizadas que não têm esgoto — e essa é realmente uma coisa inexplicável: um município permitir a construção de casas e prédios em um lugar sem esgoto; e as áreas não urbanizadas, que são as favelas. No caso das favelas, que são ocupações irregulares, o problema não é só o saneamento. As habitações não possuem os mínimos requisitos para a implantação de uma solução de saneamento.
São Paulo deu um passo muito perigoso em relação ao assunto, ao permitir ocupações em áreas próximas de mananciais e de represas sem ter uma solução completa de saneamento para tais lugares. Estão ajudando a degradar e isso pode ser discutido sob a ótica da responsabilidade.
Imil: A falta de tratamento de água afeta a saúde da população brasileira e reduz o potencial econômico dos rios, mares e baía. A Baía de Guanabara é um exemplo flagrante do descaso com a água. Saúde, economia, transporte e lazer, áreas vitais para a população das cidades brasileiras, são afetadas pela falta de saneamento básico. Por que os governos ainda não resolveram essa questão? Além da burocracia, que outros fatores estão associados à falta de tratamento de água no país?
Zanchin: A companhia de água do estado do Rio de Janeiro, a Cedae, fez uma concessão de esgoto concentrada nas favelas, chamada Área de Proteção Cinco (AP5). Em princípio, pode parecer inviável um projeto desses nas favelas cariocas, no entanto, a empresa que ganhou a concessão não só aceitou o desafio como pagou uma outorga para a Cedae. O município de Niterói está próximo da universalização de água e esgoto por meio de uma concessão privada. O único jeito é migrar para uma matriz privada de saneamento.
Imil: A água é um recurso cada vez mais valorizado no mundo, e o Brasil se destaca pelas grandes reservas de água natural. O país está preparado para explorar esse potencial ou vamos perder o bonde da história mais uma vez?
Zanchin: O Brasil não tem tanta água assim. Precisamos saber o que é água potável. Não temos muita disponibilidade de recursos hídricos renováveis, como revelou a crise no Centro Sul. Temos muita água embaixo da terra, caso do Aquífero Guarani, que é a maior reserva de água do mundo. Mas precisamos entender que esgoto é água. Enquanto não tratarmos o esgoto, vamos continuar com problemas de abastecimento. A Sabesp está cortando investimento em esgoto, uma decisão questionável tecnicamente, porque esgoto é água, e a disponibilidade de água não é infinita.
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