Num domingo de sol, minha netinha postiça, Bia, veio me visitar com duas amigas. Todas entre 8 e 9 anos e todas com a energia das primaveras que ignoram as contradições e as abominações deste mundo.
[su_quote]Temos a obrigação de ler o Brasil[/su_quote]
Chegaram ao meu escritório-biblioteca e uma delas, depois de subir a escada devidamente espiralada que leva à minha torre, olhou em volta e viu o meu único tesouro material: livros. Livros na mesa, livros em volta do computador, livros no chão, livros nas estantes e no lavabo, livros nas poltronas. Livros competindo com as fotografias que testemunham minha vida.
Livros, livros, livros e livros. Livros de todas as formas e lombadas, formando coleções ou solitários como fantasmas e pessoas insones. Calados, os livros e eu ouvimos de Lana, uma das visitantes, uma pertinente indagação:
— O senhor é bibliotecário?
— Não — respondi, falando por todos e cada um desses silenciosos mestres e parceiros de vida e trabalho. — Sou escritor, ou melhor, escrevo…
E completei com uma nota que fez os olhos das três meninas brilharem como ocorre quando aprendemos alguma coisa surpreendente:
— Para escrever, é preciso ler. É como um moinho: as palavras saem dos livros para os nossos olhos, entram na nossa cabeça e saem nas histórias que contamos e escrevemos. Eu leio porque escrevo e escrevo porque leio, entendem? Sou, no fundo, um ladrão do que está nos livros…
— Você rouba dos livros?
— Sim… e muito.
— Então é por isso que vive com eles.
Todo leitor faz coisas com livros; os quais, por sua vez, fazem coisas com ele. De um lado, eles são lidos e, muitas vezes, vividos, como aconteceu comigo quando li “Robinson Crusoe” e “Os velhos marinheiros”, pois eles me fizeram me deliciar com personagens que, sendo feitos de letras, eram mais reais do que minha vida.
Com os livros, o leitor descobre o que muitos que desonram o Brasil jamais viram. Que ao final da história, ela se reconta no leitor. É por isso que Vladimir Nabokov dizia que os livros são relidos. Quando se vive uma narrativa, descobre-se que fica muito difícil saber quem leu ou quem foi lido. Fui eu quem li “A montanha mágica” ou foi o livro de Thomas Mann que leu minha alma permitindo que eu fosse capaz de me tornar um amigo íntimo de Hans Castorp, de Settembrini, Naphta e de Mynheer Peekerkonr? E, de quebra, ficar apaixonado por Clawdia Chauchat?
Com os livros experimentamos concretamente o todo: algo com início, meio e fim. Coisa que a vida jamais vai fazer com todos nós, viventes e carentes de prefácios, índices, paginas a virar e, sobretudo, de conclusões? Não podemos abrir nossas vidas no capitulo três ou cinco. Eles se foram. Mas, outro dia, eu reli um capítulo de Dom Quixote.
Permitam-me propor que são os livros que nos leem. Do mesmo modo, é o Brasil que nos vive e — como o desonramos — raramente conseguimos encontrar em enredo decente para ele, exceto o de uma perene roubalheira. O problema é que temos a obrigação de ler o Brasil. Ele não se fecha sem alguma leitura. Não podemos deixar que o Brasil do poder pelo poder seja o nosso enredo exclusivo.
Por que, perguntou um aluno, temos tantas línguas? Existem 6.909 línguas distintas ou singulares no planeta! Ou seja, existem quase sete mil modos de pedir um favor, negar que se tem uma conta da Suíça, condenar a morte ou pedir uma pessoa em casamento. Mas, para além da comunicação, as línguas definem realidades diferenciadas. Elas constroem mundos. São mais do que máquinas fotográficas ou telefones, porque, sem elas, não haveria universo sensível e real.
As línguas, como os livros, fazem coisos conosco. Em inglês, por exemplo, existe um conjunto de reflexivos que deixavam um Jorge Luis Borges intrigado. Vejam, dizia ele, eu invejo quem pode dizer “take good care of yourself” ou “put yourself together!” Esses “selfs” têm uma dimensão que, curiosamente, controla e toma conta da outra. Eis um “dialogo”, diz Borges, que não existe em espanhol, onde, em geral, poucos se consertam ou tomam conta de si mesmos sozinhos. Isso, acrescento, para não falarmos do “eu” escrito em inglês como um “I” sempre maiúsculo.
Sinal de que o individualismo como um tijolo sobre o Ocidente moderno foi construído? Sinal de uma cosmologia baseada na parte, e não no todo, e na relação, como a nossa?
Não posso demonstrar. Só sei que o enredo da mentira, hoje lamentavelmente em foco, é precisamente essa totalidade que destrói e põe a nua desfaçatez do mentiroso. Por isso, ele não fala do assunto. Ele evita o todo e joga a culpa dos outros. Afinal como mendaz e malandro, ele é apenas a parte.
Fonte: O Globo, 14/10/2015.
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