Inflação, como peçonha de cobra, pode ser solução, se usada na hora certa e em doses muito controladas – algo muito diferente dos quase 10% de alta de preços ao consumidor, no Brasil, nos últimos 12 meses. Em janeiro de 1926, há quase 90 anos, John Maynard Keynes aconselhou o governo francês a provocar um aumento dos preços internos – defasados em relação aos internacionais – para consertar as finanças públicas. Seria uma saída mais fácil e mais defensável do que aumentar os impostos ou cortar, de forma arbitrária, os juros da dívida. Isso seria um calote, só recomendável em último caso. Para normalizar a economia, estimular a demanda e alguma inflação têm sido parte da política, nos últimos anos, em países administrados seriamente. Bancos centrais dos Estados Unidos, da Europa e do Japão afrouxaram as políticas monetárias. A inflação continua muito baixa. Apesar disso, a economia dos Estados Unidos, segundo novas estimativas, deve crescer 2,6% este ano e 2,8% no próximo. Na União Europeia, onde os efeitos da crise financeira se dissipam mais lentamente, as taxas projetadas são 1,9% em 2015 e 2% em 2016. Para o Japão, os cálculos indicam 0,7% e 1,1%, de acordo com tabela divulgada na quinta-feira pela Comissão Europeia.
Podem parecer números modestos, mas são muito melhores que os estimados para o Brasil, onde a inflação disparada se combina com recessão, contas públicas esfrangalhadas e nenhuma perspectiva de arrumação fiscal no próximos 12 ou 24 meses. A menos de dois meses do fim do ano, há poucas certezas sobre 2016 e são todas, ou quase todas, muito ruins. Os preços continuarão subindo velozmente, apesar do desemprego alto e do baixo nível de atividade, a recessão se prolongará e as finanças do governo permanecerão desarranjadas. As últimas projeções indicam para este ano uma contração econômica de 3% ou pouco mais e um novo número negativo em 2016. As novas estimativas têm variado entre -1,2% e -3%.
Quase no fim do ano, os ministros econômicos se mostram incapazes de prever com razoável aproximação o saldo fiscal de 2015. Parece mais seguro apostar num déficit igual ou superior a R$ 110 bilhões nas contas primárias, isto é, sem os juros, mas a única certeza é um amplo resultado negativo. As projeções para 2016 continuam muito vagas, principalmente porque ninguém sabe direito de onde virá a receita.
Oficialmente o governo ainda espera a recriação do imposto do cheque, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). Pelas contas do governo, isso deveria render mais de R$ 30 bilhões, porém a aprovação do projeto continua incerta. Mas R$ 39 bilhões adicionais poderão resultar da venda de ativos da União, segundo o senador Acir Gurgacz (PDT-RO), relator da parte da receita da proposta orçamentária. A previsão inclui a venda de imóveis e a licitação de hidrelétricas, portos e aeroportos.
Ninguém deveria, no entanto, confundir a liquidação de bens e direitos com o indispensável ajuste das contas públicas. Dinheiro coletado dessa forma pode servir para fechar as contas do ano, ou até de alguns anos, mas consertar as finanças do governo é outra história. Vender a prataria da casa ou a própria casa pode ser a saída numa emergência, e nada além disso. Ordenar e disciplinar o orçamento da família envolvem outras medidas. É também o caso das contas públicas.
A incerteza fiscal, disse na quinta-feira o diretor de Política Econômica do Banco Central, Altamir Lopes, aumenta a insegurança quanto à evolução dos preços. Esse foi um fator importante, segundo ele, para a decisão de adiar de 2016 para 2017 o compromisso de atingir a meta oficial de 4,5%.
Mas a insegurança fiscal envolve, de fato, muito mais que as contas de 2016. Para cuidar seriamente do problema será preciso racionalizar a despesa, escolhendo bem as prioridades e tornando o dispêndio mais eficiente. Será necessário eliminar as vinculações para diminuir a rigidez orçamentária. Isso envolverá mudanças na Constituição. Ainda assim, deve ser possível gastar melhor mesmo enquanto as vinculações permanecem.
[su_quote]Seria tolice acreditar no fim da corrupção, mas uma administração menos sujeita a loteamento e agências conduzidas com padrões mais profissionais tornariam mais difícil o assalto ao Estado[/su_quote]
A reforma da Previdência deve ser parte da racionalização. Corrigir os benefícios com base na inflação, em vez de amarrá-los ao salário mínimo, foi uma sugestão apresentada há poucos dias pelo secretário-geral da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Angel Gurría.
Também será importante mexer na máquina de governo. Nada justifica manter 23 mil cargos de confiança, sujeitos à indicação política. A presidente prometeu cortar 3 mil, número insignificante, mas acabou recuando. Pode-se discutir o alcance da redução, mas convém observar grandes economias, como a britânica e a americana, com menor número de cargos desse tipo e administrações mais profissionalizadas.
Mas será preciso ir mais longe na reforma, definindo carreiras, fixando padrões de qualidade e de produtividade e reduzindo a influência partidária – e até do governo – na conformação e na operação da burocracia. Agências reguladoras independentes e um BC autônomo, condições sempre recusadas pela presidente Dilma Rousseff e por seu partido, podem melhorar muito a gestão federal, a definição e a execução de políticas e o funcionamento de serviços de utilidade pública. Seria tolice acreditar no fim da corrupção, mas uma administração menos sujeita a loteamento e agências conduzidas com padrões mais profissionais tornariam mais difícil o assalto ao Estado e mais produtivo o setor público.
O saque da Petrobras – e de outras estatais – foi amplamente facilitado pela apropriação partidária da administração federal e pela distribuição de cargos a companheiros e aliados. A Operação Lava Jato, o evento mais animador da política brasileira em muitos anos, é um complemento precioso de qualquer curso sério de administração. Estudos recentes sobre o compadrio e sobre as políticas de financiamento são igualmente instrutivos. Inépcia, favorecimento, gastança, corrupção, crise fiscal e inflação elevada e persistente podem ser aspectos da mesma história – e são, com certeza, no caso brasileiro. O verdadeiro ajuste vai muito além da correção de algumas contas.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 8/11/2015
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