Passar-se-á a considerar a Constituição brasileira de 1988 para a análise do Poder Reformador (ou, para quem preferir, Poder Constituinte Derivado). Com base no texto constitucional em vigor, no Brasil, encontram-se normas que dão conta de ter havido dois modos de modificação constitucional: (i) pela tradicional Emenda Constitucional (EC); (ii) pelo processo de Revisão Constitucional (RC, uma só). A EC tramita segundo as prescrições do artigo 60 da Carta brasileira em vigor; até a data da publicação deste texto científico, foram promulgadas 91 EC. Já a RC se inspirou na Constituição portuguesa de 1976, texto em que estão previstas revisões constitucionais periódicas (desde 1976, a atual Constituição dos lusitanos foi revisada em 1982, 1989, 1992, 1997, 2001, 2004 e 2005). No Brasil, a RC teve previsão no artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Entre março e junho de 1994, foram aprovadas 6 Emendas Constitucionais de Revisão (ECR) mediante o quórum de maioria absoluta – ao contrário do quórum exigido para as EC (maioria qualificada de 3/5 dos membros das 2 Casas Legislativas, num total de 4 votações, 2 na Câmara dos Deputados e 2 no Senado).
A outra forma de modificar a Constituição se dá pelo controle de constitucionalidade exercido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por meio de um controle abstrato de constitucionalidade que contempla a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn ou ADI, tanto faz), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), a Reclamação Constitucional e a Súmula Vinculante. Logo, a atuação do STF brasileiro acaba sendo capaz de modificar o texto constitucional pela via do controle direto (no STF) de constitucionalidade. Todavia, pelo fato de no Brasil qualquer Juiz poder controlar a constitucionalidade de norma infraconstitucional (controle difuso, como fazem os Magistrados norte-americanos), deixando de aplicá-la num litígio concreto que esteja sob a sua análise jurisdicional, o Poder Judiciário, como um todo e em todas as suas instâncias, acaba por ser sempre um guardião da Constituição. A diferença brasileira entre os dois modelos de controle de constitucionalidade adotados pela Carta de 1988 é a seguinte: no modelo kelseniano-europeu (o direto, concentrado e abstrato) a decisão do STF terá força erga omnes; no modelo norte-americano que inspirou Ruy Barbosa, a sentença do Magistrado recusando-se a aplicar norma inconstitucional (a seu ver) num caso concreto só produzirá força entre as partes litigantes, a não ser que o Senado da República, depois de decisão do STF em sede de Recurso Extraordinário, retire a norma declarada incidentalmente inconstitucional de vigor, coragem esta que a Câmara Alta do Parlamento brasileiro jamais exerceu.
Perceba-se que nas linhas anteriores foram explicitados os modos formais pelos quais se interpreta a Constituição de 1988, e, eventualmente, se lhe modifica o texto original: (i) ou pela EC comum; (ii) ou pela ECR; (iii) ou pelo controle concentrado, direto e abstrato exercido pelo STF; (iv) ou pelo Recurso Extraordinário julgado procedente pelo STF – e que pode vir a produzir efeitos erga omnes caso o Senado cumpra a função que lhe defere o artigo 52, X da Carta.
Todavia, mesmo na lógica do Poder Reformador cuja atuação tenha sido prevista na Constituição original, não somente pelas vias formais o sentido da Constituição se modifica. Há o que se pode chamar de Poder Constituinte difuso¸ e será a ele que serão dedicados os próximos 3 longos parágrafos.
Não se deve crer que, de fato, o Poder Constituinte esteja ou instituído num prédio fixo qualquer, ou que seja ele um fator sociopolítico do qual qualquer povo esteja inteiramente ciente durante as 24 horas do dia. Ele ocorre de modo difuso… Guarde-se bem esta última palavra!
Se o Poder Constituinte derivado (reformador) é uma potência que transforma as Constituições, deve-se admitir que sua ação não é limitada pelas modalidades juridicamente organizadas de seu exercício. Para bem dizer a verdade, o Poder Constituinte não cessa jamais de agir. Toma-se conta dessa ação permanente pela qualificação do que se pode chamar costume constitucional. É este costume que traduz a validade incessante das forças constituintes. Uma vez formado um costume, tal como a regra escrita, pressupõe-se uma certa [im]obilidade do Estado de Direito que ele criou (costume = conduta reiterada + opinio vel veritatis); para se afirmar, o costume necessita de uma certa constância na prática. Assim, a significação presente de uma Constituição é essencialmente dotada de [mo]bilidade: sem que o quadro formal da Constituição seja tocado, as instituições, os órgãos, as autoridades e até a Comunidade Internacional conhecem períodos de “florescimento constituinte” seguidos de crises de degeneração. Fora isso, é sabido que a Constituição também pode ser alterada em razão da conjuntura política, fator este que afirma um exercício quotidiano do Poder Constituinte que, por não ter registro nos mecanismos constitucionais formais, nem nos sismógrafos das revoluções, nem por isso é menos real. Particularmente nos regimes democráticos clássicos – e em que os cidadãos têm um largo acesso aos instrumentos de difusão do pensamento –, há uma ação constituinte permanente da opinião pública. Isso significa que nos enquadramentos do texto constitucional em vigor, a opinião pública num país culto e democrata traça o que é possível, o que é obrigatório ou o que se proíbe: nenhum homem político digno deste nome ignora que o campo aberto às suas prerrogativas se encontra mais exatamente descrito pelos rumores da rua ou pelo curso da economia do que propriamente pelos artigos da Constituição formal.
Sem dúvida convém não exagerar a potência dessas observações a ponto de concluir que a Constituição, no sentido formal do termo, é uma mera vaidade, uma frivolidade ou futilidade; não! E sem dúvida não é possível analisar as formas de exercício desse Poder Constituinte, discreto e inominado (difuso?), pois não se saberia isolar tal potência de todo o contexto da vida política que o reveste. Portanto, resta indubitável que os juristas e os cientistas políticos devam mencionar a existência desse Poder Constituinte difuso, que não é consagrado em nenhum processo formal. Aceitar esse Poder Constituinte difuso não significa rasgar a Constituição; pelo contrário: com fidelidade aos métodos tradicionais, indica-se continuar a analisar o exercício do Poder Constituinte reformador segundo as suas formas codificadas, mas sem esquecer que, por serem mais visíveis tais formas, elas, nem por isso, tornem-se as mais perfeitas ou eficazes.
Gostei desta posição sobre o Poder Difuso. Parabéns ao IMIL e ao Prof. Alexandre Pagliarini.
Boa tarde o presidente da república pode fazer alterações na constituição?