Uma das funções mais essenciais de uma constituição é habilitar que o conflito e a disputa política, inerentes a toda sociedade, possam ser institucionalmente processados. Para isso servem as eleições, os partidos, os parlamentos com suas barganhas inomináveis e um sistema subsidiário de resolução de conflitos, que é o Judiciário. Assim, por mais extremos que sejam os desacordos entre os diversos atores sociais e mesmo entre as instituições responsáveis por canalizar seus conflitos, enquanto esses desacordos estiverem sendo razoavelmente metabolizados institucionalmente, não há que se falar em crise constitucional.
Em caso de crises políticas graves, as democracias constitucionais contam ainda com mecanismos institucionais especiais, como o estado de sítio, a intervenção federal ou o próprio impeachment, que devem ser disparados quando os instrumentos ordinários não se demonstram mais eficientes para estabilizá-las. A ativação desses mecanismos designa um agravamento da crise política, mas não necessariamente uma crise constitucional.
É natural que no momento em que esses instrumentos, pouco utilizados na vida política ordinária, entram em ação, surja uma dura disputa interpretativa sobre como estão sendo implementados. É exatamente este tipo de disputa narrativa que parece ter se acirrado após a decisão do Senado Federal.
De um lado, Senado e Câmara estão sendo acusados de terem dado um golpe na Constituição e no eleitorado ao ter cassado, sem base na lei, o mandato popular que foi legitimamente conferido à ex-presidente. De outro lado, o Senado também é acusado de estar violando a Constituição ao fatiar a votação e deixar de suspender os direitos políticos da ex-presidente, destituída do poder por fraudar as condições para o seu exercício.
Essa guerra de narrativas constitucionais vai muito além de uma mera discordância jurídica sobre o modo como se comportou o parlamento. O Supremo, em menos de 24 horas, foi convocado para julgar qual dessas narrativas mais se conforma à estrutura e ao sentido da Constituição. Embora isso demonstre a clara falta de confiança no Senado como agente especial para a solução da crise política, também aponta que os atores em disputa continuam investindo nos canais institucionais para a resolução de seus conflitos.
Ainda que o Supremo tenha uma jurisprudência razoavelmente assentada sobre os limites da sua interferência no processo de impeachment, a enxurrada de ações o obrigará a revisitar até onde será deferente ao Senado, ainda que dele discorde, e a partir de que momento se permitirá rever os atos do Senado.
A questão fundamental é se a decisão do Supremo, qualquer que seja, será capaz de amenizar a atual guerra de narrativas, recompondo a lealdade constitucional, ou se acentuará o esgarçamento do diálogo político, intensificando os conflitos sociais e o desafio à institucionalidade. Se isso ocorrer, saberemos que a grave crise política terá se transformado numa verdadeira crise constitucional. Creio, no entanto, que nosso constitucionalismo se demonstrará mais uma vez resiliente.
Fonte: Folha de S. Paulo, 03/09/2016
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