Disseminação de ‘fake news’ passa a ser obra de candidatos, presidentes e ministros de Suprema Corte. Em quem podemos acreditar?
Com o advento da internet e das ferramentas de mídia social — websites, blogs, YouTube, Twitter e contas de Facebook — qualquer pessoa ou pequena organização se tornou capaz de veicular informações para o grande público. O jornalismo tradicional, que (supostamente) é pautado por regras que garantem a apuração correta dos fatos, que dá direito de resposta e aceita o contraditório e que é exercido por corporações e pessoas que têm nome, razão social e endereços conhecidos, passou a concorrer com indivíduos ou organizações anônimas que disseminam “informações” não para informar, mas sim para alcançar objetivos ocultos tais como desacreditar inimigos, ganhar eleições ou simplesmente aumentar o tráfego de seu website.
E não pense o leitor que a disseminação de fake news (notícias falsas) é obra exclusiva de gente marginalizada ou de organizações clandestinas. “Terrível. Acabo de descobrir que Obama mandou grampearem meus telefones na Trump Tower antes da vitória. Nada encontrou. Isto é Macartismo”, tuitou Donald Trump, presidente eleito dos Estados Unidos… “Espero que não fiquemos sabendo que você tem uma conta offshore nas Bahamas”, disse Marine Le Pen para Emmanuel Macron em pleno debate presidencial francês. (A pergunta se referia a um link no site 4chan.org, que expunha documentos falsos que demonstravam que Macron sonegava impostos por meio de um banco nas Ilhas Cayman. O link surgiu duas horas antes do debate…) A verdade é que muitas vezes as fake news são reproduzidas e utilizadas por organizações e pessoas proeminentes de forma tão rápida que muitas vezes parece estar combinado com o veículo que criou a mentira… Em um ambiente assim, em quem podemos acreditar?
De fato, as fake news se tornaram um fator tão importante na política e na vida contemporâneas que a própria aplicação do conceito de fake news passou a ser objeto de disputa. O mesmo Donald Trump, que anunciou ter sido vítima de uma gigantesca fraude eleitoral que nunca aconteceu (e que teria lhe roubado a maioria absoluta na eleição presidencial), tuitou: “Alguém competente e com convicção deveria comprar o fake news e decadente ‘New York Times’ e administrá-lo direito. Ou então deixá-lo acabar de forma digna”. Por sua vez, o “New York Times”, que insiste em caracterizar Trump como o mago das fake news, afirmou em editorial: “Donald Trump entendeu uma coisa melhor do que quase todos os observadores das eleições de 2016: ele entendeu que a desconstrução da ‘realidade’ comum a todos e construída sobre fatos aceitos pela sociedade em geral não representa um problema, mas sim uma oportunidade… Como um autocrata, ele obtém o apoio de seus seguidores mentindo de forma tão corriqueira e descarada que milhões de pessoas simplesmente desistiram de tentar distinguir a verdade da mentira.”
O editorial do “New York Times” tocou no cerne da questão. A verdade e a mentira são propriedades de certos tipos de enunciados, a dizer, dos enunciados que afirmam algo acerca de realidade. (Enunciados declarativos na terminologia de Quine.) E como é que distinguimos se um enunciado declarativo é verdadeiro ou falso? Comparamos este enunciado com a realidade e vemos se o que ele afirma é o caso. Mas o que acontece quando não há consenso sobre a realidade? Como é que se faz a comparação?
Este me parece ser o ponto crucial. As fake news não têm relação com o conceito de verdade. Pós-modernos a parte, todos nós sabemos distinguir enunciados verdadeiros de enunciados falsos quando podemos compará-los com a realidade. (Para saber se esta chovendo, olhamos pela janela.) O problema das fake news é que elas tornam a realidade fluida. A proliferação insana de informações desconexas retira do cidadão comum a capacidade de saber o que é o caso. Parafraseando Marshall Berman, a proliferação das notícias falsas faz com que a realidade se desmanche no ar.
Isto, evidentemente, é um problema. Afinal, a existência de algum tipo de consenso sobre a realidade é fundamental para a vida em sociedade. Por exemplo: a Justiça só pode ser feita depois de estabelecidos os fatos. Um juiz só pode decidir se Temer cometeu crime de corrupção passiva se ele souber o que Temer fez. O que me leva ao título deste artigo? Um dia antes da indicação da nova PGR, Gilmar Mendes jantou com Temer. Sobre esse jantar, a assessoria de Gilmar Mendes declarou que “o tema do encontro foi a reforma política.” O que acontece com um país quando um juiz do supremo dissemina fake news?
Fonte: “O Globo”
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