Assim como os baianos, com bom humor, cunharam a auto-ironia “sabe o absurdo? Na Bahia tem precedentes”, na Argentina um jornalista cunhou a sentença de que “donde acaba la razón, empieza la Argentina”. Na época em que, no auge das “commodities”, o país chegou à beira da fratura entre a cidade e o campo, outro jornalista tinha feito a reflexão amarga de que “na China, a crise é sempre vista como uma oportunidade; na Argentina, toda oportunidade gera uma crise”. Se a realidade do nosso principal vizinho era sombria nas épocas de bonança, agora que o mundo mudou, ela se apresenta especialmente preocupante.
Nos tempos em que todas as variáveis pareciam sorrir para Néstor Kirchner, o ministro de Economia da época levou a ele um plano para desacelerar moderadamente o crescimento (naquela época, em torno de 8 %) citando os problemas que estavam começando a aparecer, com destaque para a inflação. Obsessionado pela rejeição às prescrições vistas como “neoliberais”, Kirchner, segundo relatos jornalísticos, teria reagido com as seguintes palavras: “Ni loco!”. O ministro engavetou a sugestão e pouco tempo depois acabou saindo melancolicamente do cargo.
A história dá uma pequena idéia de como tem sido processadas as decisões na Argentina, depois da saída de Roberto Lavagna da função de condutor da economia. A sua demissão coincidiu com a proliferação de atos aberrantes que tem marcado a vida econômica e política dos nossos vizinhos nos últimos anos. Como, por razões familiares, cultivo há anos o hábito de ler todos os dias os três principais jornais argentinos pela internet, vou expor ao leitor algumas amostras diversas desse clima, recolhidas dessa leitura:
I) Pouco antes da crise energética que sofreu o país há um par de anos, uma entidade privada estava organizando um evento para discutir o risco de racionamento. Com um par de centenas de ingressos já vendidos e a convocação para o evento já circulando, o empresário que estava organizando o debate teria recebido um telefonema de um dos políticos mais poderosos do país, dizendo que “o presidente não gostaria que o evento fosse realizado”. O evento foi então cancelado;
II) Quando o preço do petróleo começou a aumentar, uma das empresas multinacionais mais importantes do ramo promoveu um aumento moderado dos preços nas bombas de gasolina, em momentos em que o governo defendia um congelamento especialmente rigoroso. Ato contínuo, um posto de gasolina dessa bandeira sofreu uma depredação completa por parte de algumas dezenas de “piqueteros”, sob a passividade policial. Meses depois, o líder desse ato de vandalismo foi nomeado para um importante cargo oficial. O aumento, naturalmente, foi cancelado;
III) Ao começar a se agravar o problema inflacionário, empresários importantes teriam passado a receber telefonemas de autoridades, sugerindo que eles deveriam deixar de contratar os serviços de determinados consultores privados, que estavam apontando com mais insistência para a ameaça da eclosão de um processo inflacionário mais agudo;
IV) no dia da derrubada, por parte do Congresso, da proposta oficial de aumento da taxação (“retenciones”) do setor agropecuário, derrota essa normal em uma democracia e comparável à que o governo sofreu no Brasil em 2007 na votação da CPMF, vários relatos sugerem que Néstor Kirchner teria, nas horas que sucederam à votação, defendido o argumento de que a sua esposa teria que renunciar à presidência, absurdo institucional do qual ela teria sido dissuadida pelo ministro Alberto Fernández (na época, uma espécie de Dilma Rousseff do gabinete argentino, pela sua importância política);
V) O que aconteceu com os indicadores de preços do INDEC (o IBGE argentino) ultrapassa todos os limites. O grau de intervenção atingiu tal intensidade que não há um único argentino que acredite na veracidade dos indicadores, que falam de uma inflação de 8% a 9%, quando nos últimos dois anos estimativas privadas apontam para taxas anuais de inflação na faixa de 15% a 25%;
VI) O episódio dos fundos de pensão é um caso escandaloso (não simpatizo com adjetivos, mas nesse caso o termo se aplica) de apropriação de recursos privados pelo governo. Equivale a que o governo brasileiro um belo dia, por um ato “legal”, se apropriasse dos recursos dos detentores de aplicações de tipo PGBL ou VGBL de milhões de indivíduos;
VII) Como os fundos de pensão privados eram acionistas de empresas (assim como a Previ, para citar um exemplo, participa normalmente de diversos empreendimentos), os empresários de pessoas jurídicas em cujo diretoria tais fundos têm assento, estariam começando a receber telefonemas de importantes gabinetes sugerindo que as empresas devem fazer os investimentos que o governo sugerir, com a mensagem subliminar de que “para bom entendedor, meia palavra basta”; e
VIII) Em novembro, um dos mais importantes líderes sindicais aliados do governo promoveu um “camionazo”, quando os caminhões do sindicato que a ele responde impediram fisicamente a saída do centro de distribuição dos dois principais jornais do país, associados à propaganda contra o governo.
A lista de atropelos é longa. A Argentina teve tudo, ao longo dos últimos anos, para dar certo. Preços internacionais nas alturas, um mundo ávido pelos principais produtos da pauta de exportação do país (carne e soja), os benefícios de uma redução expressiva da despesa de juros do balanço de pagamentos devido ao perdão de 70% da dívida externa, etc. Cegado pelo êxito temporário e agindo como um dono de estância (acostumado a governar por diversas vezes, graças ao instituto da reeleição indefinida, uma província rica e com menos eleitores do que o colégio eleitoral do Leblon), com a saída de Lavagna, Kirchner optou por se cercar de bajuladores receosos de levar a ele más notícias e por dobrar a aposta no enfrentamento com qualquer grupo que lhe fizesse uma oposição mais dura. Agora, está começando a época das conseqüências.
(Valor Econômico – 04/12/2008)
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