É como vemos os outros. Aliás, a alteridade revela sempre a possibilidade de uma visão de fora acompanhada da necessidade do olhar de dentro.
O outro sempre tem um olhar complicado. Em geral tido como ofensivo, irracional, reacionário e, é claro, ignorante. Se é um próximo tabus cercam o seu olhar, pois um filho não pode ver a mãe ou a irmã nuas. E se um filho quiser corrigir a fala de um pai, ele deve iniciar seu reparo pedindo licença ou algo equivalente. Há uma dialética das alteridades. De fato, quando um filho faz um reparo ou discorda de um pai, ele fica surpreendentemente distante a ponto de não ser mais reconhecido como tal. Do mesmo modo e pela mesma lógica, uma divindade, um inimigo ou um estrangeiro – um outro prototípico – pode ficar próximo de nós quando discorda, abandona ou trai o seu grupo original. O traidor é um distante que virou próximo; o ingrato é um próximo que se distanciou.
Num incesto, há esses movimentos perturbadores entre proximidade e distância, entre submissão aos pais ou figuras paternas cuja posição, como ensina Freud, é irremovível (eles têm laços de “sangue” conosco) e traçam limites; por contraste com a igualdade implicada nos contatos íntimos e pela revelação do corpo nu em pelo. A igualdade axiomática, fundadora da reciprocidade como moralidade nas sociedades chamadas de “selvagem”, tem muito a ver com a ausência de vestimentas (não com a nudez) que tanto nos choca e que simboliza pobreza extremada e uma paradoxal ausência de vergonha misturada com inocência – esses elementos que emolduram socialmente a nudez no nosso sistema. Do ponto de vista do olhar do filho, não há choque maior nem maior medida de independência ou ousadia do que ver o patriarca nu ou vê-lo namorando. Pior que isso seria a perturbadora distância criada quando se vê ou ouve o interditado: os pais tendo relações sexuais. Agora, vemos nossos pais como outros, de fora e de longe, tal como olhamos um estrangeiro.
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Quando o próximo vira estrangeiro e o nosso um outro, somos levados a exclamações de surpresa, asco ou admiração. “Eu não esperava isso…”; ou “fiquei apavorado de saber que ele (ou ela) era isso ou aquilo!” tais são as reações reveladoras da quebra de uma suposta intimidade quando um próximo aparece como distante. E o seu olhar passa de dentro para fora.
Um teórico da sociologia sugeriu que tais misturas gramaticais entre o que se espera dos de dentro e dos de fora são um índice revelador de mudança sociocultural. A passagem bíblica da Torre de Babel (Gênesis 12:1-5) é mais do que um mito de origem das diferentes línguas faladas no mundo. É igualmente um drama da descoberta de que o olhar íntimo e cúmplice pode tornar-se estrangeiro, distante e, quem sabe, indiferente, como um amor não solicitado.
A polarização que testemunhamos no Brasil pode ser lida como um claro sintoma de mudança. Numa sociedade na qual todos sabiam dos seus lugares e havia um lugar para cada coisa – esquerda e direita, católicos e crentes, negros e brancos, ricos e pobres, dividiam primariamente tudo, pois cada coisa estava em seu lugar! –, vivemos hoje mudanças e, mais que isso, o direito de mudá-las. Desse modo, temos que a todo momento controlar o impulso agressivo despertado por esses olhares distanciados lançados pelos que julgávamos próximos.
No Brasil, onde vivemos por séculos um jogo político de cartas bem marcadas, pois sabíamos quem eram os donos do poder, não há nada mais surpreendente e decepcionante que esse verdadeiro “carnaval político” no qual nem uma “direita” e muito menos uma “esquerda” tem coerência com seus olhares. E, no entanto, devo notar enfaticamente que nada é mais democrático do que essas alternâncias de alteridades. A maior prova de igualdade democrática em qualquer sistema é justamente saber que hoje podemos ser “situação” e, amanhã, “oposição”. Democracia tem tudo a ver com a possibilidade de trocar de olhares. De ver o próximo (e sobretudo a si mesmo) de fora para dentro e de dentro para fora. Ver o outro como parte de um sistema que nem ele pode destruir ou ameaçar é a marca de um sistema sustentado pela alteridade. É, nesse sentido, um sinal de progresso e não, como insiste a mídia mediana, uma desgraça ou tragédia.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 21/11/2019