Uma das (muitas) dificuldades impostas pela escolha do governo de propor uma reforma administrativa por meio de emenda constitucional é a de se estimar os seus impactos fiscais. Ao contrário da reforma da previdência, cujas mudanças automaticamente definem novas regras, a proposta atual propõe novos conceitos que só serão detalhados nas regulamentações infraconstuticionais que se seguirão. São projetos de lei que deverão estabelecer quais e quantas serão as carreiras típicas de Estado, os critérios para a fusão de carreiras, quão mais baixos serão os salários iniciais para várias delas, o ritmo de progressão, as regras e limites para promoções e, fundamental, o modelo de avaliação de desempenho (e desligamento por baixo desempenho) que deverão nortear desde a confirmação de vínculos até as distribuições de bônus e outras vantagens. Vale lembrar, contudo, que esta última parte não precisaria esperar a tramitação da PEC. Princípio basilar da gestão de pessoas baseada em meritocracia, a regulamentação da avaliação de desempenho pode, felizmente, ser analisada em paralelo. Infelizmente dependemos da vontade do presidente da República para isso.
Ainda assim – e apesar das dificuldades de se estimar os impactos de uma proposta ainda conceitual – já surgem os primeiros números. Alguns deles estão na Carta de Conjuntura nr. 48 do Ipea, já repercutida pelo Estadão em matéria assinada por Adriana Fernandes e Idiana Tomazelli. Os autores, experientes pesquisadores no campo das finanças públicas, fazem um robusto exercício de estimação dos impactos da reforma administrativa e da LC173/2019 (que congelou os salários do funcionalismo público até dezembro de 2021) nos gastos com pessoal em diferentes cenários, nos três níveis da Federação e em todos os poderes. Os números, embora apenas um exercício inicial, são impressionantes e deveriam ser usados como uma primeira evidência da urgência e relevância de uma reforma administrativa.
Mais da autora
Imil nos Bastidores entrevista Ana Carla Abrao
O estado se tornou um reforçador de desigualdade por não prover serviços de boa qualidade’, diz economista
Pelos cálculos do Ipea, em um cenário intermediário em que se consideram servidores estatutários e não estatutários, o congelamento de salários imposto pela LC173 irá gerar uma economia, nos próximos 10 anos, superior a R$ 100 bilhões só no governo central. Adicione-se Estados e municípios aí e temos uma economia de outros quase R$ 400 bilhões no mesmo período. Não se considerou aqui o impacto financeiro da interrupção na contagem de tempo para fins de anuênios, quinquênios e outras gratificações, também previstos na lei e que certamente adicionam aí alguns outros bilhões. Ou seja, estamos falando de um impacto superior ao da reforma da Previdência, aprovada no ano passado. Não, congelamento de salários não é política de pessoal e nem tampouco reforma administrativa, mas esses números nos dão a dimensão da voracidade com que as despesas de pessoal têm avançando sobre os orçamentos públicos.
Leia também:
Millenium Explica: por que precisamos de uma reforma administrativa?
Destrava: por uma reforma administrativa do bem
Mas vamos às mudanças propostas pela PEC 32/2020. Aqui o desafio de cálculo é ainda maior pois além da elaboração de hipóteses, há que se lidar com a dificuldade de acesso a dados, em particular do Judiciário e dos entes subnacionais. Mas o trabalho do Ipea faz esse exercício e estima os efeitos do alongamento no atual ritmo de promoções e progressões automáticas, de salários iniciais menores e de uma menor taxa de reposição da força de trabalho que se aposenta. No cenário mais conservador, os números adicionam à conta anterior outros R$ 240 bilhões de economia em dez anos. Dado o atual estágio das discussões, os autores precisam fazer hipóteses heroicas, algumas inclusive conservadoras – como o ritmo mais lento de promoções e progressões ou difíceis de julgar, como a de reposição da força de trabalho, ameaçada pelos atrasos na digitalização e pelo envelhecimento da força de trabalho, principalmente nos Estados.
Ficaram de fora das estimativas do Ipea, além dos impactos da eventual extensão para os servidores atuais de alguns dos dispositivos propostos, a extinção das atuais verbas adicionais por tempo de serviço: anuênios, quinquênios, sextas partes, licenças prêmio, etc. Também não estão na conta a obediência ao teto salarial constitucional – tão desrespeitado pelo Judiciário – nem tampouco a proibição de pagamentos retroativos e a venda das imorais férias de 60 dias, todos difíceis de serem calculados em função da falta de acesso a informação.
À medida em que o debate avance haverá, certamente, outras versões do estudo do Ipea e outros ainda surgirão, como o da Instituição Fiscal Independente (IFI), que já está trabalhando nisso. Mas vale aplaudir esse primeiro estudo que indica que, se quisermos chegar àquele R$ 1 trilhão que o ministro Paulo Guedes por várias vezes se referiu quando falava de privatizações, basta encarar uma reforma administrativa ampla e para todos. E isso é só o troco, porque os grandes números da reforma virão não do efeito fiscal, mas sim do impacto positivo que ela terá para 220 milhões de brasileiros, via melhorias na qualidade do serviço público e maior justiça social.
Fonte: Estado de S Paulo 23/09/20
Foto: Dida Sampaio/Estadão