Quem acompanha o Millenium Fiscaliza já leu: o Brasil parece um verdadeiro cemitério de obras paradas. São diversos projetos de infraestrutura que tiveram início, mas pararam com o passar do tempo e estão por aí, sem continuidade, com os materiais estragando e sem benefício para a população. Prejuízo constante aos cofres públicos. E, por onde quer que se olhe, há novos casos que confirmam a tese sobre o absurdo que é a paralisação de investimentos, fruto da ausência de planejamento, da presença da corrupção ou dos dois fatores envolvidos.
Olha só o caso de Amparo, no interior de São Paulo. Por lá, o Ministério Público entrou com Ação Civil Pública para impedir as obras da represa de Duas Pontes, por conta de irregularidades na obra. Iniciaram o investimento sem a concessão de licenças emitidas pela Agência Nacional de Águas (ANA), uma das condições da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) para que as obras pudessem acontecer.
O Departamento de Águas e Energia (Daee) vinha tentando obter essa outorga desde 2016. Ela foi negada por um motivo simples: a qualidade da água era inadequada para o abastecimento público. Mesmo com estudos que comprovavam a falta de qualidade da água, e mesmo sem a documentação, o Daee resolveu começar a obra, por conta própria, em 2019, dando uma “pedalada”: eles publicaram portaria própria dispensando obtenção de outorgas externas quando o próprio Daee fosse o executor da obra – tudo para permitir uma obra que, no final das contas, resultaria em abastecimento de água imprópria para os moradores. O MP percebeu a esperteza e ingressou com a ação.
Aliás, o descompasso entre os projetos de infraestrutura e a questão ambiental costuma ser um dos fatores que mais contribuem para a paralisação das obras. Em agosto, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com ação na Justiça Federal contra a União, o Departamento Nacional de Infraestrutura (Dnit), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e a Fundação Nacional do Índio (Funai). O motivo? O descumprimento de obrigações ambientais para a pavimentação da BR-163, no sudoeste do Pará.
Uma série de medidas foi planejada antes do início do asfaltamento, de acordo com o MPF, justamente para evitar danos aos povos indígenas. Essas obrigações vinham sendo cumpridas pela Funai e pelo Instituto Kabu, uma entidade que representa o povo Kayapó, mas os planos de trabalho deveriam ser renovados até julho e, até agora, nada. Os índios pararam a rodovia, fizeram protesto e o MPF solicitou que o Dnit encaminhasse à Funai um novo plano de trabalho para renovar o apoio às comunidades indígenas. Além de receber sanções do Ibama e da União, o Dnit também deve, em seis meses, executar obra dos melhoramentos dos ramais – considerados essenciais para garantir o escoamento de produtos florestais, como a castanha, fundamentais para a subsistência dos povos indígenas.
Mas há, também, o outro lado. O MPF entrou com ação para suspender a licitação do Dnit para recuperar um trecho da BR-319, que liga Manaus a Porto Velho, entre os quilômetros 177,8 e 250, mas o pedido liminar foi negado. A fundamentação foi a seguinte: as providências visam tão somente o término de obras inacabadas, e os trabalhos não promoverão a ampliação da capacidade da rodovia”. No caso, de acordo com a juíza federal Jaiza Fraxe, o Dnit iniciou todo o planejamento para retomar as obras de pavimentação e reconstrução do trecho, conforme previsto em Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) feito com o Ibama, elaborando documentos necessários para a licitação.
Há casos ainda mais emblemáticos. A usina nuclear de Angra 3, por exemplo, começou em 1984 e nunca foi concluída. Equipamentos foram instalados e estão sem uso. Para evitar um prejuízo ainda maior com a perda desses materiais, o governo federal gasta R$ 40 milhões por ano com a sua manutenção. Em Alagoas, o projeto Pratagy, “pensado” para acabar com o problema de abastecimento de água em Maceió, também está há mais de 30 anos sem conclusão. E parece piada, mas não é: a recuperação do aqueduto do Catolé, do programa “Alagoas tem pressa” … Está parada há quase dez anos!
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E, em certos casos, nem rezando… Recentemente, o Brasil ficou escandalizado com a revelação de que a construção da nova Basílica de Trindade, capitaneada pelo padre Robson, está permeada de pecados graves. O investimento é faraônico e fora da realidade terrena, com o maior sino suspenso do mundo e uma altura que quase toca o céu: 94 metros, o que equivale a um prédio de 30 andares. E isso em um espaço generoso, com 120 mil metros quadrados. Até aí tudo bem…
Mas a previsão inicial da obra, de R$ 100 milhões, passou para R$ 1,4 bilhão. E a coisa piora: o padre Robson está sendo investigado pelo Ministério Público de Goiás (MP-GO) por suspeita de desvio e lavagem de dinheiro na Associação Filhos do Pai Eterno, a Afipe. A obra da igreja começou em 2012 com a previsão de ser concluída em dez anos. Porém, além do orçamento ter sido inflado, o cronograma também foi adiado, com término previsto apenas para 2026. E o pior: parte desse dinheiro pode ter sido usado para atividades não muito religiosas, como a compra de uma fazenda de R$ 6,3 milhões; e uma casa de praia na Bahia, por R$ 2 milhões.
Um problema antigo
Se os casos pontuais sempre chamam a atenção pela absurda falta de planejamento e cuidado com o dinheiro público, um dado é ainda mais alarmante. Sabe quando essa questão das obras paradas foi investigada pelo Congresso, por meio de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)? Em 2001. Isso mesmo! O problema persiste há pelo menos 19 anos. A CPI da Câmara Federal ficou inconclusa e, na época, um relatório paralelo foi confeccionado, passando a investigação sobre obras e empreiteiras para o MPF. E houve irregularidade em 40% das obras!
Dezessete anos após a CPI, em 2018, o Tribunal de Contas da União (TCU) deu números ao cemitério de obras paradas que os brasileiros constatam no dia a dia: são 14.403 projetos inconclusos. Se isso for convertido em dinheiro, significa R$ 10 bilhões jogados no lixo. Desvios, sobrepreços, aditivos abusivos, projetos ruins, descumprimento de contrapartidas e dificuldades em gerir o dinheiro da União fazem parte desse “caldo”.
Como recuperar as obras sem furar o Teto de Gastos?
O Brasil está com as contas públicas combalidas há muito tempo, e essa situação piorou com a pandemia do novo Coronavírus. Neste contexto, fica a dúvida: como retomar esses investimentos e manter a responsabilidade fiscal? Recentemente, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, deu uma ideia: utilizar as emendas parlamentares, com investimento em obras de alto potencial de execução.
Como você sabe, os deputados federais e senadores podem remanejar parte do Orçamento da União para investimentos diretos nos municípios. A ideia do ministro Tarcísio é que os deputados joguem esta verba para projetos que estão em andamento ou que não foram concluídos.
Esta seria uma forma de não furar o Teto de Gastos. No entanto, é preciso ter cautela quando se fala de gasto público. Ainda mais quando uma ala do governo é apontada como “gastadora” e propensa a desrespeitar o Teto.
Enquanto isso…
Enquanto, no Brasil, a gente convive com escândalos de toda ordem, um bom exemplo vem de Portugal. Os patrícios concluíram as obras de reabilitação da Ponte do Alcoutenejo, planejada com orçamento de € 100 mil, e prazo de execução que está completamente fora da nossa arrastada realidade: apenas 85 dias. Foi feito de tudo: manutenção da estrutura e de funcionalidade, reforçando a estabilidade; pavimentação e impermeabilização do solo, além de drenagem.
💡 Dica do Instituto Millenium
Essa situação que a gente acompanha em todo o Brasil só mostra o quanto o país precisa de transparência e de fiscalização. Mas não são apenas os órgãos de controle e as instituições que precisam estar de olhos abertos: isso também é responsabilidade nossa! Todo cidadão pode e deve acompanhar a situação das obras paradas na sua cidade ou na região próxima.
Você tem o direito de questionar o seu deputado ou a entidade responsável pelo investimento que não aconteceu. Qualquer pessoa pode enviar ofícios ou requerer uma representação no Ministério Público. Acesse a Página da Cidadania e veja como contribuir para fiscalizar os órgãos públicos. Faça a sua parte!