Um levantamento feito pelo G1 revela que ao menos 1.593 servidores do governo federal são candidatos nestas eleições.
Esses funcionários foram obrigados a solicitar uma licença para a atividade política, que dura de três a seis meses, dependendo do cargo. Segundo o Ministério da Economia, o servidor não tem a opção de abrir mão da remuneração nesse tempo, apesar de estarem afastados do cargo.
Em apenas um mês, o salário desses servidores chega a R$ 15,5 milhões. Ou seja, considerando o tempo mínimo de licença, esse montante é de R$ 46,4 milhões.
É provável, porém, que os valores sejam ainda maiores, principalmente quando considerados os servidores do Legislativo e do Judiciário, além de funcionários públicos das esferas municipal e estadual.
Os servidores que se lançaram na política em 2020 ocupavam, principalmente, os cargos de professor, médico, policial rodoviário federal, sargento e técnico do seguro social. A maioria estava lotada nos ministérios da Saúde e da Economia, no INSS, no Comando do Exército e na Polícia Rodoviária Federal (PRF). O cargo eletivo mais buscado é o de vereador (1.320 do total).
O levantamento é resultado do cruzamento de dados da lista de servidores do Poder Executivo do governo federal, disponível no Portal da Transparência, e de candidatos que disputam estas eleições, disponível no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O Ministério da Economia informa que esse é o arquivo público mais completo sobre servidores.
Disparidade na disputa
O cientista político Humberto Dantas, head de educação do Centro de Liderança Pública, afirma que a remuneração paga durante a licença aos servidores pode causar distorções nas eleições, principalmente em cidades pequenas – o dinheiro é um dos fatores predominantes para o sucesso eleitoral. Dantas lembra ainda que, ao entrar de licença, o servidor deixa de cumprir as suas funções – o que pode fazer grande diferença no caso de policiais ou médicos, por exemplo.
Outro problema, aponta o cientista político, é que não houve alteração na duração mínima da licença, apesar de o tempo de campanha eleitoral ter sido reduzido de 90 para 45 dias na reforma política de 2015. A regra está em vigor desde as eleições de 2016. A lei que trata da licença para atividade política, por outro lado, é de 11 de dezembro de 1990.
“Nem as convenções partidárias são tão distantes das eleições, nem a campanha começa três meses antes da eleição. As campanhas hoje têm 45 dias. Como pode dar licença de 90 dias e a pessoa sai só 45 dias para pedir voto?”, questiona.
Para o economista Fernando Botelho, professor da FEA-USP e doutor em economia pela Universidade Princeton, dos Estados Unidos, a licença para os servidores candidatos “cria uma assimetria terrível, já que a maior parte das pessoas não tem esse privilégio”. Botelho afirma ainda que esse assunto deveria ser discutido na reforma administrativa. O Ministério da Economia não quis se manifestar.
“Você tem o mundo do funcionário público, onde tudo é azul. Agora, com a pandemia, o salário continuou caindo na conta sem nenhum problema. É um mundo onde não tem problema. E há outro mundo, que é o Brasil de verdade, em que as pessoas perdem emprego, têm que correr atrás do dinheiro, um dia você ganha dinheiro e no outro não ganha. E isso se reflete também no aspecto eleitoral. Algumas pessoas podem concorrer mantendo o emprego e o salário, enquanto outras têm que pedir demissão para poder concorrer. Isso é um absurdo. Tem que ter condição igual para todo mundo”, diz.
No estado de São Paulo, nas eleições municipais de 2016, a Corregedoria Geral da Administração abriu apuração e foram detectadas irregularidades na licença para atividade politica de quatro agentes públicos (dois funcionários da segurança pública e dois na área da saúde). A Corregedoria recomendou, na época, a correção dos seus atos com a devolução dos salários pelo período de afastamento. Já em 2018 não foi aberta apuração.
“Em 2020, está em andamento a abertura de expediente correcional para acompanhar as candidaturas de agentes públicos. A Corregedoria é um órgão de apuração, investigação diante de denúncias e/ou apresentação evidente de irregularidades. Ela não pune o servidor, faz recomendações acerca dos atos correcionais para as unidades administrativas num processo que envolve a Procuradoria Geral do Estado”, diz a nota do órgão.
Gasto ainda maior
Um estudo com a lista de candidatos das eleições de 2016 e 2018, realizado pelos professores Humberto Dantas e Fernando Botelho, indica que o custo dos servidores candidatos deve ser ainda maior do que o revelado pelo levantamento do G1.
Em 2016, as remunerações pagas a servidores candidatos somaram R$ 687,8 milhões. Já em 2018, com menos candidatos na arena eleitoral, o total foi de R$ 112,2 milhões. Com o aumento de candidaturas em 2020, devido principalmente ao fim da coligação em eleições proporcionais (como a de vereador), os professores acreditam que a soma dos salários deve ficar próxima a R$ 700 milhões.
Para a pesquisa referente às eleições passadas, os professores cruzaram a base de dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) – que não é pública, exige a assinatura de um termo e ainda não há versão referente a 2020 – e a lista de candidatos do TSE. Foram considerados apenas os funcionários públicos concursados em todas as esferas e poderes.
Servidores candidatos
O G1 localizou cinco candidatos da lista de 1.593 servidores do Poder Executivo do governo federal. Esses candidatos recebem os salários mais altos, que se aproximam do teto constitucional de R$ 39 mil. São médicos e auditores federais. Houve até quem dissesse que gostaria de abrir mão do salário, mas, como a lei não permite, continua com o “incentivo público” para ser eleito.
O médico Wellington Bruno, candidato a vereador pela Rede Sustentabilidade em Niterói (RJ), recebe o maior salário da lista de servidores que participam destas eleições. A remuneração básica bruta dele foi de R$ 36.565,43 em setembro. Esta é a primeira eleição em que ele se candidata. A licença concedida ao médico é de três meses. Ele diz que resolveu se candidatar porque está “indignado como todos os cidadãos”.
“Aos 57 anos de idade, após 32 anos sofrendo com as consequências das decisões políticas na área de saúde pública, junto aos meus colegas profissionais de saúde e junto aos pacientes, estou preparado para ocupar um espaço na política municipal e contribuir para lutar por mudanças, propondo projetos e fiscalizando o Executivo”, diz.
Já o candidato Antônio Samarone (Cidadania), professor de medicina da Fundação Universidade Federal de Sergipe, também entrou na disputa para uma vaga de vereador. Esta é a quarta eleição da qual participa em Aracaju. Nunca foi eleito. Em setembro, o salário bruto de Samarone foi de R$ 35.563,68. Ele não quis se manifestar.
Outro médico aparece na lista: Roger Catunda Rocha, candidato a vice na chapa do atual prefeito de Chaval (CE), filiado ao PDT. O município fica a 400 km de Fortaleza e tem pouco mais de 10 mil habitantes. Doutor Roger está lotado na Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, que é ligada ao Ministério da Educação. O salário do médico foi de R$ 32.805,64 em setembro.
Ele diz que queria abrir mão da remuneração durante a campanha, apesar de a lei não permitir atualmente. “Eu mesmo acho que a gente deveria ter o direito. Acho que quem sair candidato deve abrir mão da remuneração durante aqueles meses. Porque muitas pessoas são candidatas, mas não têm voto. São candidatas apenas para ganhar dinheiro público. Eu vou ser eleito. Eu fui candidato a prefeito desta cidade há 20 anos. Agora sou candidato a vice do prefeito eleito que vai para a reeleição.”
Outro candidato servidor é o auditor-fiscal do trabalho Luiz Gonzaga Lima de Morais, que concorre a uma vaga de vereador de Patos (PB) pelo Solidariedade. A remuneração do auditor foi de R$ 30.303,62 em setembro. Ele diz que se candidatou por “amar a cidade e por já está aposentado desde 25 de outubro de 2020”. “Eu me aposentei, como falei, no domingo. Tenho 75 anos. São seis meses de licença [para auditor fiscal do trabalho] para uma candidatura.”
Já o auditor-fiscal da Receita Eden Siroli Ribeiro, que tenta uma vaga de vereador em São Carlos (SP), recebeu R$ 30.303,62 em setembro. Filiado ao Republicanos, ele disputou a eleição também em 2018, quando concorreu a uma vaga de deputado federal na capital paulista. Ele diz que “hoje, com as regras atuais, não faz mais sentido [a licença], haja vista que as convenções são marcadas para as vésperas da data limite do registro”.
Apesar disso, ele afirma que tem “uma filha do primeiro casamento que recebe 1/3 do salário” e que “não faria sentido algum privar uma criança de seu sustento por causa de uma campanha eleitoral”. “Eu pessoalmente tenho plena convicção de que muitas leis carecem urgentemente de serem atualizadas. E para se alterar a lei tem que ser pelo processo legislativo. As leis do país são reflexo de seus políticos. Políticos ruins fazem leis ruins. Políticos bons fazem boas leis”, diz.
Fonte: “G1”, 11/11/2020
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