Quando trabalhava num museu cheio de ossos e de artefatos indígenas cheirando a naftalina e mofo, eu — recém-chegado de Harvard e contrariamente ao meu projeto de ser apenas um pesquisador — fui galgado à posição de coordenador de um programa de ensino e pesquisa. A saída de seu fundador promoveu a minha entrada na “burro-cracia” federal da universidade e, de repente, eu me vi na posição de liderar um grupo de pessoas que mal conhecia. Éramos todos contra a ditadura militar que então governava um Brasil administrado pelo arbítrio e sem a regra de lei que entre nós, humanos, sempre instáveis e interessados, ajuda a manter a coerência; e, eventualmente, mas nem sempre, garante o uso de um só peso e medida.
Um dia, graças a circunstâncias que espero contar com mais detalhes em outro lugar, surgiu a oportunidade de contratar o grupo de professores do programa (de fato, a sua esmagadora maioria), integrando-os aos quadros da universidade. Digo integrar porque, àquela época, eles eram pagos por uma fundação americana que, por meio de sua filantropia, dirimia a nobre culpa ianque por ter criado um colar de ditaduras militares que coroavam com seus diversos tipos de despotismo o nosso continente. O tal “cone sul” ou “América latina” que só agora os americanos estão deixando de ver como um bloco instável, único e atrasado. Algo que, sem nenhum exagero, ainda se situa na sua lata de lixo por contraste com uma certa Europa e Ásia que estão na sua sala de visita.
Pois bem. Quando um todo-poderoso burocrata da universidade dignou-se a entrar em contato comigo, solicitando os nomes dos professores a serem finalmente integrados no nosso programa, não tive dúvida ou neutralidade. Eu sabia de que lado estava, muito embora alguns desses colegas não comungassem comigo das mesmas convicções liberais que, aos 20 anos, eu havia consolidado na minha experiência com a América de Jefferson, Lincoln, Luther King, Thornton, Wilder, Capra, John Ford, Kubrick e muitos outros; mais do que com a vivência com os Estados Unidos de Joseph McCarthy, Nixon, da Ku-Klux-Klan e da dinastia Bush. E assim eu confirmei os seus nomes, muito embora na nossa convivência eu sempre fosse direta ou marginalmente tachado como sendo de “direita” ou de “liberal” com tudo o que essa palavra contém de execrável, de indigno e de desprezível no Brasil (e mais ainda no Brasil daquela época). O mesmo ocorrendo com a minha mal começada obra. Uma vez me disseram que em vez de falar de carnaval ou de renunciantes, como Augusto Matraga, de comida e de dona Flor como metáfora do Brasi, eu deveria estudar camponeses e operários.
Em alguns projetos e publicações produzidos naquele museu eu, apesar de coordenador, era excluído porque certamente não ficava bem mencionar o nome de um semifascista nos resultados de pesquisas de “esquerda” que iriam transformar o Brasil.
Lembro essas passagens não para ativar ressentimentos que já encontraram seu lugar num velho e machucado coração, mas para insistir num ponto: jamais assumi uma posição de neutralidade que — como o limbo — seria mais do que justificado por um coordenador acidental e marcado por um preconceito político tão distorcido pela inútil, mas sempre ressuscitada dualidade entre direita e esquerda.
Por causa disso, e mesmo ouvindo com mágoa a suspeita de um colega que expressou dúvida se o seu nome constaria da lista que enviei à universidade, não fiquei em cima de um doce muro do qual, como fizeram dona Marina e os verdes, muita gente pensa que se pode descortinar os dois lados.
Faço estas confidências porque elas têm muito a ver com o clima eleitoral brasileiro. Você fica neutro quando um presidente da República e um partido que se recusou a assinar a Constituição e foi contra o Plano Real usam de todos os recursos do Estado que não lhe pertencem para ganhar o jogo? Você diz que o jogo não interessa porque você queria que os adversários fossem do mais alto nível e isso não existe em nenhum país e muito menos no Brasil? Será que você não enxerga que o exemplo da neutralidade é fatal quando há uma óbvia ressurgência do velho autoritarismo personalista por meio do lulismo que diz ser a “opinião pública”? O que você esperava de uma disputa eleitoral no contexto do governo de um partido dito ideológico, mas marcado por escândalos, aloprados e nepotismo? Você deixaria de tomar partido mesmo quando o magistrado supremo do Estado vira um mero cabo eleitoral de uma candidata por ele inventada? É válido ser neutro quando o presidente vira dono de uma facção, como disse com precisão habitual FHC? Se o time do governo deve sempre vencer porque tem certeza absoluta de que faz o melhor, pra que eleição? A dúvida, o debate, os momentos de ansiedade e de tédio são parte do fardo grandioso da democracia que tanto queríamos. Só os fascistas e os de máfé, só os ignorantes desse processo podem achar que tudo é péssimo, inclusive os candidatos. Você pode não gostar de um ou do outro, mas a disputa que o Lula e o PT querem anular usando o pessimismo burro do brasileiro para com a “política” é crítica para liquidar as convergências liberais que alcançamos.
Pense nisso, não enverdeça.
Não esconda o seu medo de decidir com argumentos bacharelescos. Diga de que lado você está. Lembre-se que neste mundo não há deuses ou superheróis.
Há apenas pessoas comuns que são candidatos temporários a cargos que têm uma enorme e decisiva influência no nosso destino!
Fonte: Jornal “O Globo” – 27/10/10
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