Somos bons para mandar e, quando a ordem é dada pessoal e diretamente, obedecer; mas não conseguimos seguir nenhuma regra. Não somos capazes de nos guiar por normas sem cara ou corpo, mãos e chibata, dívida e promessa.
Se o mandão se relaciona conosco, seguimos; se é uma lei escrita num papel ou revelada num sinal de trânsito, mandamos plantar batata.
Aprendemos, faz tempo, que seguir uma norma feita para todos produz uma ordem anônima, impessoal e universal. Mas seguir tais leis é um sinal de inferioridade. Como discordar delas sem parecer grosseiro ou rebelde? Os superiores fazem as leis e com elas se enroscam em exegeses profundas e eruditas, distinguindo o não do nada e ambos do zero e do vazio; já os subordinados, obedecem. A lei não foi feita para todos do mesmo modo não governamos para todos, mas somente para os necessitados: para o “povo” pobre e faminto. O tão teorizado e um tanto gasto papel de cidadão não engloba o de pobre, esse personagem favorito dos políticos, porque (como os ricos) ele é o foco irredutível de toda a vida política e moral. Em nome dos extremos, todos os extremos se justificam pois eles são os meios que permitem chegar a um destino do qual o governo seria instrumento. Tudo o mais é ardil.
A lei vale para todos mas eu não sou todo mundo: sou especial. Filho de dona M. e do dr. P. Eleito pelo povo, sou exclusivo. Pelos laços de família escapulo como uma aranha dessas obrigações de todos. Esses que, para mim, são populares e inferiores.
Coisas e gentes a serem elevadas e protegidas, salvas e entronizadas em alguns lugares e tempos, mas não todo o tempo. Elas justificam um ministério da cultura, jamais a cultura de um ministério. Eis a concepção de “cultura” vigente no país…
Isso explica por que é tão fácil indiciar e acusar e tão difícil prender os facínoras que, livres, ricos, risonhos, engravatados e brejeiros, nos ensinam o estar de paz com a vida. Quanto maior o bandido, mais complicado fica julgá-lo e prendê-lo porque sua fama já o situa num nível especial e diferenciado. Não é por acaso que todo criminoso sonha virar político.
Entre nós, não é o ato mas quem o pratica que condena. Se for pé-rapado, “teje preso!”. Se for deputado, entra o recurso e chega a veemente defesa porque “No caso de T., não! Esse eu conheço! Esse é meu amigo! É dos nossos! A ele eu devo favores!”. Há a biografia que, na visão autoritária de um mundo graduado, as pessoas comuns não têm porque sendo simples, honestas, indefesas, boas, pobres e humildes — numa palavra: sendo cidadãos comuns e anônimos — elas não teriam, vejam o atraso e a arrogância da história pessoal!
Um dia, ouvi perplexo, um médico famoso dizer que jamais havia pago um centavo de imposto de renda. O rompante do olhar tinha aquele brilho que ofusca os otários e os imbecis que, cidadãos, pagam e não chiam. Um americano que partilhava conosco o jantar engasgou-se. Nos Estados Unidos, todos sabem que só há duas certezas nesta vida: a morte e os impostos, esse dinheiro sagrado que vem do povo e permite a existência do governo. No Brasil, pelo contrário, é o governo que legitima o povo.
Um papel timbrado vale mais do que o sujeito que ele representa. Na América, os impostos são as grades da jaula de ferro que, como viram Weber e Kafka, independem da vontade humana; aqui eles são as barras de chocolate comidas pelos políticos.
Fora da situação somos mais implacáveis do que um carrasco nazista e mais sérios e duros do que guarda americano da imigração. Dentro, amaciamos e viramos cúmplices. “Você deveria ter dito isso antes!”, falamos num pedido se desculpas. “Se eu soubesse que era o Chiquinho eu mesmo teria colocado uma cláusula especial no decreto.” Ou, então: “Não custava pedir vista ou engavetar o processo!”
Como ser oposição se um dia chegamos ao governo e o poder é muito mais um instrumento capital para retribuir favores e não para tentar melhorar o mundo, servindo a este mundo? Se tudo se dividia entre nós e eles, mocinhos e bandidos, revolucionários e reacionários, vira de pontacabeça e agora “nós” somos “eles”, como fazer? Normalmente, vamos por parte. Os mais próximos, primeiro; depois os outros e o que sobrar vai para a sociedade. Mas o que ocorre quando a demanda igualitária aumenta e a mídia aproxima governo e governados, revelando suas incríveis proximidades? Mostrando como os hábitos ficam, embora a ideologia troque de lugar? Exibindo que, no fundo, todos são muito mais parecidos do que pensávamos? A resposta, amigos, se resposta existe, é que não pode haver oposição se não há uma efetiva diferença. Democracia tem truques, mas ela não suporta uma ética de condescendência, um espírito com dois pesos e medidas.
Fonte: O Globo, 17/11/2010
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