O maniqueísmo raramente leva a conclusões racionais. A segregação infantil entre o bem e o mal é uma tendência humana que se esvai com o tempo e a experiência, conforme aprendemos que entre o preto e o branco temos uma infinidade de tons de cinza. Ainda assim, vivemos em tempos tão especiais, tão loucos que colocam algumas verdades de cabeça para baixo – inclusive a frase de abertura deste artigo.
Estamos no quarto ano da ‘crise global’. Os altos e baixos se alternam nas economias mundiais e no mercado, mas a sensação é que esqueletos habitam armários por onde quer que se vá. Resolvem-se os bancos americanos, pipoca a crise na Grécia. Acomoda-se aquele país, e os olhos já se voltam para a Península Ibérica. Passa mais esta onda, e o foco muda para o default americano. E por aí vai…
A exasperação que toma conta dos profissionais de investimento e do público em geral é compreensível, pois esse círculo vicioso cansa. Todos querem tocar suas vidas, construir seus projetos, sem precisarem se preocupar com a próxima tsunami que irá varrer esses sonhos do mapa. Estabilidade e previsibilidade é e sempre foram fatores essenciais para a prosperidade, tanto no hemisfério ocidental baseado no capitalismo, direito de propriedade, como no ‘modelo chinês’, baseado na centralização política, planejamento e distensão controlada (na figura do proverbial e fugaz déspota esclarecido). Esses fatores nos foram roubados nos últimos anos, e sua ciclicalidade obviamente levanta uma pergunta simples. Estariam os sintomas da crise interligados por um fator comum ?
A resposta é sim. E infelizmente este fator não tem tradução precisa em português: ele se chama accountability.
Quando o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) decidiu incluir o accountability como um de seus valores, investiu centenas de homens-hora para conseguir traduzir ou ao menos explicar à sociedade o que isso significava. Optou-se pelo termo ‘prestação de contas’, embora o anglicismo signifique muito mais do que isso. O termo embute premissas de transparência e assunção de responsabilidades por parte dos agentes econômicos – e são essas premissas que sumiram do cotidiano moderno.
A crise do subprime americano ocorreu porque os vendedores de ativos podres não precisavam detalhar o que estavam vendendo; não se comprometiam com a qualidade desses ativos; não prezavam sua reputação. Da mesma forma, os compradores escudávam-se nos ratings sabidamente incompetentes e superficiais, e na sensação confortável que uma manada confere aos seus participantes.
O mesmo pode ser dito da crise europeia. Países gastaram como se não houvesse amanhã, beneficiados por taxas de juros baixas. Estas, por sua vez embasavam-se na premissa de que um país da Europa nunca entraria em default – em forte contraste com a experiência histórica. Os compradores, mais uma vez, fechavam os olhos para o que compravam, acompanhavam a manada e agora reclamam aos governos como se tudo fosse culpa dos especuladores, ou de uma crise sistêmica que veio de Saturno.
Bancos se beneficiam da premissa implícita de que não serão permitidos a dar calote. E essa premissa, que foi fonte dos abusos, é cada vez mais intensificada pelas respostas dos reguladores. O sistema financeiro americano sobrevive à base de subsídios cavalares, tomando dinheiro a zero e emprestando de volta ao governo a taxas positivas. E o sistema europeu, montado em cima de títulos podres, confia que poderá sempre entregá-los ao governo, pois caso contrário o Armagedon se instalará novamente no mundo. E diga-se de passagem que só o farão em último caso… a possibilidade de vender ativos podres ao Banco Central Europeu é pouco usada pelos bancos pois teriam que reconhecer perdas contábeis em títulos soberanos que, embora claramente maculados, ainda podem ser carregados ‘na curva’ em seus balanços. E, para solicionar a crise grega a última cartada é uma estrutura financeira tão opaca que parece inspirada nos veículos criados para os subprime americanos !
Globalmente, a ordem do dia é empurrar com a barriga. Quick the can down the road, na expressão inglesa. A barriga já está calejada, e as latas chutadas já se amontoam à nossa frente.
Em terras tupiniquins a crise de accountability também toma dimensões preocupantes. Tanto no setor público como no privado abundam exemplos de reversão dos enormes ganhos de transparência obtidos pela sociedade ao longo das últimas décadas. Às vezes somos tentados a olhar para fora e pensar que nossos “jeitinhos” não são nada perante o que se vê nas economias centrais. Mas não podemos nos enganar: estamos cometendo os mesmos erros (de maneiras diferentes), e pagaremos por eles no futuro.
Não há almoço grátis. O mundo já está pagando este preço na forma de fantasmas que saem recorrentemente do armário, e em expectativas declinantes de crescimento. Nenhum animal spirit tem como se manifestar numa economia global baseada na complacência e procrastinação.
Está na hora de buscarmos um choque de accountability. Balanços – públicos e privados – que reflitam a realidade. Falidos que vão à falência – públicos e privados. Investidores que façam seus deveres de casa – e respondam por eles – ao invés de se escudarem em análises padronizadas de terceiros cujo histórico dispensa comentários. Reguladores que não temam a verdade, e que também não cedam à preguiça de construir suas regras tendo como base as opiniões mágicas tais agências miraculosas. E – fundamentalmente – transparência entre os custos e os benefícios das políticas públicas. Só assim será possível quebrar esse círculo vicioso.
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