O cidadão brasileiro já não fica tão indiferente quando descobre que um político – ou um agente público, um burocrata estatal, devidamente apadrinhado por um político – andou surrupiando seu dinheiro. Ele se aborrece, ao menos um pouco. A opinião pública protesta e a imprensa, cada vez mais, noticia. Os organismos oficiais encarregados de investigar e julgar atos de corrupção põem-se a trabalhar – embora, admitamos, em matéria de malversação do erário a impunidade ainda seja uma sólida instituição nacional. De todo modo, nesse quesito, o Brasil caminha. A vida dos ladrões dos cofres públicos ainda é farta, compensadora, mas não é tão fácil como já foi. Alguma reação existe.
Agora, quando o assunto é informação pública, a atitude é totalmente outra. Se um governante conta mentira, pouca gente se incomoda. Se a assessoria de imprensa de um Ministério dificulta o trabalho dos repórteres, acusando-os de “trabalhar para a oposição” – um bordão que nos acompanha desde o Império, mas se agravou a partir do século 20 -, nada a fazer. Os repórteres resignam-se e tentam outro caminho – ainda bem que não desistem. Se órgãos de Estado escondem dados essenciais para os direitos do cidadão, ora, o nosso senso comum dá de ombros.
Em síntese, o estado atual da nossa cultura política apresenta estas duas inclinações bem nítidas. A primeira é o empenho mediano, apenas mediano, em reduzir a dose, ao menos a dose, de desvio de dinheiro público. A segunda é a complacência integral de toda gente com a autoridade pública que, para preservar a própria imagem, sonega informações de interesse público. Aceitamos, assim, que a informação sob guarda da autoridade seja administrada segundo lógicas partidárias. Na nossa prática, ela não é um direito do cidadão, mas uma ferramenta do proselitismo governista.
O leitor talvez se pergunte: mas com base em que pesquisa empírica se pode fazer uma afirmação assim tão categórica? A resposta é simples: não há necessidade de nenhuma enquete, nem de exaustivas análises de opinião. Bastam os sintomas que aí estão. Vejamos o caso da vez: o do Ministério dos Transportes e do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit), essas duas entidades do Poder Executivo que foram atropeladas por um cortejo de jamantas, todas buzinando, todas carregadas de denúncias de irregularidades. Quase duas dezenas de servidores de alto escalão, a começar pelo próprio ex-ministro, foram afastados. Neste momento, as duas entidades, além de outras, como a Valec, se encontram oficialmente sob investigação. Estão obrigadas a esclarecer casos suspeitos. A prestar contas.
Mas não prestam. Fingem que não é com elas. Ao menos em seus canais de comunicação com o cidadão – os seus respectivos sites na internet – não tocam no assunto. O sintomático é que ninguém reclama. Fica por isso mesmo.
É positivo que a sociedade exija punição de corruptos – mas é negativo que todos nos conformemos tão facilmente com a sistemática sonegação de informações dos órgãos públicos que se encontram sob investigação. O leitor que não se apresse a dar de ombros, ele também, dizendo que o site do Dnit não tem nenhuma importância. Tem, sim. Ou deveria ter. Aquilo é a face pública de uma instituição pública, que tem o dever legal de informar o cidadão sobre suas atividades. Mais que isso, precisa mostrar respeito pelo direito à informação da sociedade. Do modo como se apresentavam até ontem, tanto o site do Ministério dos Transportes como o do Dnit eram a expressão do mais acintoso descaso com o direito à informação dos brasileiros. Não trazem uma única linha sobre os processos que realmente interessam ao público. Em vez disso, funcionam como agências de propaganda e de promoção.
Na primeira página do site do Dnit – aquela que chamam de home – brilha a manchete relevantíssima anunciando que o ministro “vistoria rodovias afetadas pelas chuvas na Paraíba”. Espera-se que vistorie outros assuntos, mas sobre esses outros, nada. No mesmo site, aparecem como integrantes da “Diretoria Colegiada” nomes como os de Pagot, Sadok e Caron, que, de fato e de direito, estão fora. A “Auditoria Interna” é um endereço para o qual o cidadão é convidado a enviar um e-mail. Ele pode confiar. Na “Carta de Serviços ao Cidadão” podemos ler que “a democracia exige cada vez mais a transparência das ações institucionais”. Ah, bom.
No site do Ministério dos Transportes parece não ter sido viável fingir tão complemente que nada acontece. Na home o cidadão encontra uma estranha sequência de “notas à imprensa”. Elas vêm enfileiradas, uma depois da outra, cada uma informando sobre a demissão de cada um. Não são notas à sociedade, mas à imprensa, como se apenas à imprensa interessassem o êxodo em curso e os motivos que o provocaram. E não informam nada. Veja-se esta, por exemplo, do dia 15: “O ministro dos Transportes, Paulo Sérgio Passos, decidiu afastar temporariamente o diretor executivo do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit), José Henrique Coelho Sadok de Sá, que estava respondendo pela Diretoria Geral do órgão. Ao mesmo tempo, constituiu Comissão de Processo Administrativo Disciplinar para apuração dos fatos noticiados pelo jornal Estado de São Paulo, na edição do dia 15 de julho de 2011”.
Ora, mas que fatos são esses? O cidadão que procure a edição do “Estadão”. O Ministério não conta. Não adianta procurar. O Dnit e o Ministério não têm nada a dizer à sociedade. E nisso se encontram em sintonia com a cultura política média da administração pública no Brasil. Segundo essa cultura, a opinião pública não é uma instância capaz de julgar. Ela é massa de manobra.
Isso não dá certo. Uma sociedade que quer exigir punição dos corruptos sem exigir transparência – mas transparência de verdade, transparência ativa – acaba ficando sem as duas coisas.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 28/07/2011
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