O moderno orçamento público surgiu na Europa medieval e se consolidou com as mudanças institucionais da Revolução Gloriosa (Inglaterra, 1688) e da Revolução Francesa (1789). É pane relevante da marcha civilizacional rumo à democracia. Seu papel foi limitar o poder absoluto dos reis. Sua execução é obrigatória em países desenvolvidos.
Nesse processo, receitas e gastos passaram a depender de prévia autorização legislativa. Criou-se a auditoria das contas públicas. Douglass North e Barry Weingast, em clássico estudo sobre a Revolução Gloriosa, chamam tais avanços de “revolução fiscal”. Na Inglaterra, berço dessa evolução, uma liturgia anual simboliza o valor do orçamento. O ministro da Fazenda caminha da residência oficial até o Parlamento para a entrega solene do documento. Logo em seguida, o tema ocupa páginas dos jornais e tempo do rádio e da TV.
O Brasil é herdeiro de velhas tradições ibéricas, marcadas por patrimonialismo e frágeis instituições fiscais. Até os anos 1930, as emendas parlamentares ao orçamento serviam para fazer nomeações, dar nome a ruas e cometer outras esquisitices. Aqui se interpreta que o orçamento é “autorizativo”, com base no artigo 66 da Constituição, que fala em “montante da despesa autorizada”. Na verdade, “autorizar” a despesa é função exclusiva do Legislativo. Isso não quer dizer que o governo possa descumprir o orçamento. Tal interpretação tem permitido ao Executivo alterar, a seu modo, prioridades estabelecidas em lei. Trata-se de aberração institucional que consagramos no Brasil.
A proposta, feita anos atrás, de inserir a ideia do orçamento impositivo na Constituição tem toda razão de ser. Acontece que a emenda recentemente acolhida por Comissão da Câmara foi modificada para incluir apenas as emendas parlamentares. Caso seja aprovada dessa forma, poderiam advir graves consequências para o país. Isso porque o Congresso tem o mau hábito de inchar as receitas, interpretando um dispositivo constitucional que prevê a correção de “erros e omissões”. A regra é usada para “reestimar” a receita e dessa forma abrigar mais emendas parlamentares. Se a prática for mantida e houver obrigatoriedade de liberação automática das emendas, o descontrole de gastos será inevitável. A saída é estabelecer que a estimativa da receita caiba a uma agência independente, a ser criada, ou a técnicos dos três poderes, como em outros países. O cálculo seria compulsoriamente adotado na feitura e na aprovação do orçamento.
Há dois aspectos adicionais. Primeiro, a conveniência de manter certa flexibilidade para alterar o orçamento, quando urgente. Segundo, a inconveniência, lembrada por alguns, de criar uma rigidez para apenas 10% dos gastos (os outros 90% já são obrigatórios). A flexibilidade pode ser mantida mediante autorização para remanejamentos limitados e criação de rito sumário para as emergências. Há países onde mudanças podem ser feitas em 24 horas. Na zona do euro, os recentes cortes de gastos foram aprovados rapidamente pelos respectivos parlamentos. Quanto aos 10%, há que modernizar o orçamento, mesmo que para uma parcela menor.
Para evitar o desastre fiscal que se avizinha e não deixar passar a oportunidade de civilizar o orçamento, seria desejável que as lideranças do Congresso e do Executivo se articulassem em torno de uma proposta sensata, fundada em três pontos: (1) o orçamento impositivo valeria para todas as despesas: (2) o Executivo seria autorizado a remanejar despesas não obrigatórias até um limite razoável, como já se faz atualmente; e (3) seriam adotadas regras de governança para evitar a “estimativa” inconsequente das receitas.
Estudiosos atribuem à lei orçamentária um caráter meramente formal, que não incorpora norma jurídica obrigando sua execução. Essa visão despreza as origens históricas do orçamento e seu papel na democracia. Outros, a meu ver corretamente, conferem a esse documento o caráter de lei plena, portanto obrigatório.
A aprovação do orçamento impositivo, sem os riscos citados, é um avanço necessário. De lambuja, chegaria ao fim a má prática de utilizar as emendas parlamentares como instrumento de barganha política.
Fonte: revista “Veja”
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