A discussão em torno da ação dos black blocs tem sido frequentemente enviesada, se não deturpada, por não estar focada no uso que tem sido dado à violência desse grupo nas consequências dela derivadas. Não se trata de manifestação “espontânea” nem da ação de bandos desorganizados, mas de um tipo de intervenção que se define por um propósito claramente político.
Pesquisas sobre o que dizem os que assim agem terminam por arranhar superficialmente o problema, porque seus agentes não são meros indivíduos, mas membros de uma organização com método em suas ações. Suas falas, individualmente, nesse sentido, são necessariamente limitadas, se não encobridoras, na medida em que suas ações em muito transcendem manifestações individuais.
Advogar um diálogo com eles, como se fossem a expressão de um descontentamento “social”, significa tirar a questão de seu ponto central. A violência é avessa a qualquer diálogo, quanto mais empreendido por grupos que, se chegam a declarar alguma proposta, é com o intuito de que ela seja inexequível – por exemplo, a extinção do “lucro”, da sociedade de “mercado”, e assim por diante.
Note-se que tais grupos se caracterizam por ações metódicas e organizadas. São como células que respondem a um comando, dotadas de extrema mobilidade e que conseguem muitas vezes distrair a atenção policial. Atrair a atenção sobre um ato determinado de vandalismo e depredação, com o objetivo de empreender outro muito maior em outro local.
Agem quando de manifestações pacíficas, fazendo-as acabar em violência, visualizada com grande estardalhaço pela mídia. A finalidade é ocupar a cena pública. Quanto maior for o impacto televisivo, maior será seu “ganho”, pois tais imagens se propagarão com força por todo o país e mesmo para além dele. Para quem não gosta do crescimento e da competitividade internacional do país, o “ganho” terá ainda um “reconhecimento” extra. Fora de nossas fronteiras, tais imagens adquirem o estatuto de manifestação “popular’, como se o Brasil estivesse à beira de um problema institucional sério.
As jornadas de junho foram uma impressionante manifestação de cidadania, com mais de 1 milhão de pessoas nas ruas clamando contra a corrupção e a má qualidade dos serviços públicos, com foco, num primeiro momento, na mobilidade urbana. As pessoas, com toda a razão, estão cansadas de pagar altos impostos, tendo como “retribuição” andar de pé, apertadas, nos ônibus em péssimas condições. O transporte toma-se um calvário. Filas em postos de saúde e hospitais, com atendimento sofrível, mais o baixo nível da educação pública configuram um quadro lamentável: a feia pintura de nosso país.
O exercício da autonomia expresso em tais manifestações, não obedecendo a nenhuma orientação partidária, mostrou um outro país possível, alerta para os desmandos vigentes, não aceitando nenhum tipo de instrumentalização. Naquele momento era como se o país, surpreso, estivesse vendo desfilar uma banda da liberdade e da indignação. Contudo essa irrupção do novo assustou.
Assustou os que até então dominavam as ruas ou delas procuravam ter o monopólio, como os diferentes partidos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais organizados, que tiveram, então, a intenção de se apropriar desse sopro de autonomia. A heteronomia entrou na pauta. O resultado foram “greves” e “manifestações” que terminaram em completo fiasco, expondo a dissociação entre a tentativa de manipulação e a legítima indignação das ruas.
Nesse contexto, a ação dos ditos “vândalos” passou a ter maior protagonismo, atuando em qualquer tipo de manifestação, relegando os demais a posição secundária. Na verdade, houve um processo de estranhamento: os manifestantes autônomos e indignados não mais se reconheceram naqueles mascarados. A violência exposta não era um espelho seu.
O resultado foi imediato: o refluxo das manifestações autônomas e legítimas. A expectativa nascida quando das jornadas de junho foi progressivamente minguando. Por enquanto, pode-se dizer que desapareceu, embora possa ressurgir em outro contexto. A violência enxotou os indignados da rua.
Logo, o efeito objetivo dos agentes da violência, os black blocs ou outros nomes que se lhes queira dar, foi o esvaziamento das manifestações autônomas e, mais do que isso, de suas bandeiras. Expulsaram da rua as bandeiras contra a corrupção, por um melhor serviço público e menos impostos. Eis a verdadeira consequência de suas ações. Ou melhor, eis o seu verdadeiro objetivo. A quem interessa isso?
Curiosamente, os que se dizem “anarquistas”, em tese os defensores da autonomia e da liberdade, são os que buscam diretamente tomar inviável toda manifestação livre e autônoma. Nada têm eles de anarquistas no sentido estrito da palavra, são meros representantes de uma esquerda que usa irrestritamente a violência segundo suas conveniências políticas.
Observe-se que muitas agremiações que participaram das jornadas de junho, como o Movimento Passe Livre, e outras posteriores, de certos sindicatos de professores, nutrem simpatia por esses “vândalos”, como se sua causa fosse a mesma, apesar de seus meios divergirem. Comportam-se como “companheiros”. Companheiros de quê, precisamente? Da desmobilização popular? Do abandono das bandeiras contra a corrupção, o desvio de recursos do erário e a péssima qualidade dos serviços públicos? Da desresponsabilização de seus responsáveis?
Expressão disso é o fato, politicamente inquietante, de que bradam contra a “criminalização dos movimentos sociais”. Traduzindo: a violência deveria ser permitida e defendida, pois seus agentes sustentam uma “causa social”. Seu objetivo consiste em deixar a impunidade reinar e as instituições democráticas se enfraquecerem.
Fonte: O Estado de S.Paulo
BRAVO! É o mais lúcido e honesto artigo sobre os fatos e suas consequências que tive a oportunidade de ler. Assino embaixo, e não tenho dúvida a quem esta violência já beneficiou.