“As vítimas de ontem são os vitoriosos de hoje. Elas não se envergonham de mostrar a cara e manter viva a memória nacional, ao contrário dos torturadores, que trafegam pelas sombras e insistem em negar o que fizeram.” Frei Betto escreveu isso na passagem dos 30 anos da Lei de Anistia. Agora, capitaneados pelo secretário de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, os “vitoriosos de hoje” negociam com o ministro da Defesa, Nelson Jobim, o conteúdo do decreto que cria a Comissão Nacional da Verdade. Toda a disputa se trava em torno da fabricação da “memória nacional”.
Frei Betto não é sempre contra a violência política de Estado. Há pouco, quando se preparava para receber em Havana mais um prêmio da ditadura castrista, publicou um artigo sobre a blogueira Yoani Sánchez. Dias antes, ela sofrera um sequestro relâmpago e agressões corporais de agentes da polícia secreta cubana. No artigo, o piedoso frade sugere que o evento existiu apenas como maligna invenção de Yoani e, ainda, que a blogueira funciona como peão do “inimigo externo” da indômita Cuba socialista. Até onde pode ir Frei Betto em nome de sua causa?
Não é exato dizer que as “vítimas de ontem” são os “vitoriosos de hoje”. Elas fazem parte do condomínio que está no poder, mas à custa de uma dupla renúncia. Em primeiro lugar, renunciaram ao seu programa original, que persiste apenas na esfera simbólica e se manifesta iconicamente em eventos como o da premiação de Frei Betto. Em segundo lugar, renunciaram aos seus princípios políticos e se associaram aos “vitoriosos de ontem”, que formam um componente crucial da base governista. Eis o motivo pelo qual Vannuchi não terá a “verdade” que almeja no fim da negociação em curso.
Justiça e verdade não são a mesma coisa. A primeira depende das leis vigentes e se coagula na decisão, certa ou errada, de um tribunal superior. A segunda é uma leitura do passado, uma narrativa mais ou menos amparada nos fatos, que se condensa como consenso circunstancial, sempre sujeito a revisão. Sancionada pelo último general-presidente no outono da ditadura militar, a Lei da Anistia tinha os intuitos simultâneos de impedir a produção da justiça e promover um equilíbrio entre duas verdades conflitantes. Na versão formulada por Vannuchi, a Comissão da Verdade pretende unicamente consagrar a verdade dos autodeclarados “vitoriosos de hoje”.
A justiça é um patrimônio coletivo. Augusto Pinochet foi processado num tribunal chileno por violações de direitos humanos e um tribunal argentino condenou Jorge Videla à prisão perpétua. Tais veredictos não são triunfos das “vítimas de ontem” e não compensam os amigos, irmãos, filhos e netos vitimados nos subterrâneos das ditaduras. Eles equivalem a contratos históricos das duas nações, que comprometem as gerações futuras no repúdio à tirania e na proteção das liberdades políticas e dos direitos humanos.
A Lei da Anistia proíbe o Brasil de firmar consigo mesmo um contrato dessa natureza. Os “vitoriosos de hoje” acatam tal interdito. Nos termos daquela lei, classificada por Frei Betto como “uma vitória parcial”, eles trocam o contrato nacional por indenizações pecuniárias pessoais cujos valores oscilam em função do prestígio e da influência dos beneficiários. Vannuchi, que os representa, coerentemente assegurou que a Comissão da Verdade “não é contra a Lei da Anistia”.
A verdade – isto é, a “memória nacional” – é um patrimônio privado. Nas ditaduras comuns, a censura e a repressão sustentam a hegemonia da verdade oficial. Nas ditaduras totalitárias, como a cubana, o partido único veicula a sua verdade dogmática por meio dos sistemas de comunicação e educação e de todas as instituições culturais. Nas democracias, por definição, não existe uma verdade de Estado, mas verdades concorrentes que dialogam no mercado de ideias. A pretensão de, por meio da Comissão da Verdade, marcar uma verdade particular com o sinete de verdade oficial evidencia o que pensam da democracia os “vitoriosos de hoje”.
“A anistia foi a pedra de toque da transição da ditadura para a democracia e acredito que isto é um pacto político e como tal não vale a pena reabrir essas velhas feridas.” As palavras do deputado Raul Jungmann, que refletem a covardia de nossa elite política, foram escolhidas para exprimir a repulsa de Jobim e dos comandantes militares à Comissão da Verdade. Eles todos sabem que Vannuchi não persegue a justiça e respeita o “pacto político” que protege o vértice da cadeia de comando da ditadura militar. Mas a falsa acusação de violar a sacrossanta Lei da Anistia funciona como expediente eficaz para atingir o fim realmente visado.
Os comandantes militares insurgem-se contra as propostas de identificação das estruturas empregadas nos subterrâneos da tortura e de proibição legal de batizar logradouros com o nome dos responsáveis pela tortura. Eles não se erguem contra uma inexistente ameaça judicial, mas cerram fileiras em torno de um valor simbólico: a imagem dos chefes das Forças Armadas do passado recente, que identificam com a instituição militar atual. No fim das contas, negam aos “vitoriosos de hoje” até mesmo um troféu puramente virtual.
Há uma narrativa histórica implícita na Lei da Anistia, que emerge na declaração do brigadeiro da reserva José Carlos Pereira: “Se a coisa é séria e se quer investigar, teria que investigar os dois lados, é claro.” A descrição do Estado ditatorial e dos militantes de esquerda, armados ou não, como “dois lados” simétricos de uma guerra ideológica internacional cumpre o papel de tese de legitimação da violência política oficial. O artigo de Frei Betto sobre Yoani Sánchez constitui uma versão adaptada dessa mesma obscenidade.
Os “vitoriosos de hoje” não são muito diferentes dos de ontem. Uns e outros negociarão suas verdades particulares – e continuarão a negar a justiça à Nação brasileira.
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