Uma análise recente de um dos think tanks emergentes da Grã-Bretanha no espaço do progresso/abundância, o Centre for British Progress, oferece insights valiosos. Suas ideias sobre recrutamento e retenção de talentos técnicos no serviço público britânico mencionam vários mecanismos institucionais que merecem atenção, especialmente considerando que o Brasil carece dessas estruturas.
O Reino Unido desenvolveu vários instrumentos sofisticados de gestão de talentos que funcionam como “artefatos de política pública”. São ferramentas institucionais que moldam como o governo valoriza e retém expertise técnica:
- Marco de Capacidades Digitais e de Dados do Governo (GDaD): Um sistema de classificação de cargos que mapeia funções técnicas por área de atuação e nível de competência, definindo padrões esperados de capacidade. Isso permite que os ministérios alinhem treinamentos, conduzam avaliações e ofereçam aumentos salariais padronizados baseados em competências demonstradas, criando uma ligação direta entre habilidades e remuneração, independentemente da graduação tradicional no serviço público.
- Gratificação por Função Estratégica (Pivotal Role Allowance): Pagamentos direcionados para retenção (até £20.000 por 24 meses) especificamente desenhados para posições críticas onde o indivíduo é considerado propenso a deixar o cargo e cuja expertise é essencial para as operações.
- Classificação de P&D para Salários: Um mecanismo orçamentário que reclassifica gastos com determinados grupos de posições como despesa de pesquisa e desenvolvimento. Isso permite que os custos associados sejam transferidos de orçamentos operacionais para de capital, efetivamente contornando os tetos salariais padrão do serviço público (como visto no AI Security Institute, onde possibilitou salários até duas vezes os limites usuais).
- Esquemas de Cessão (Secondment): Caminhos formalizados para que talentos se movam entre governo e iniciativa privada, construindo capacidade enquanto criam fronteiras porosas entre setores.
O problema estrutural brasileiro: quando a rigidez impede a gestão
Uma coisa que possibilita a existência desses artefatos é o ambiente no qual operam: uma estrutura de pessoal focada no trabalho a ser feito. Este é um desafio fundamental no Brasil.
Para entender a diferença, imagine duas formas de organizar uma empresa ou órgão público:
No modelo brasileiro (sistema de carreiras): Você contrata alguém para ser “Analista da Carreira X” e essa pessoa permanece nessa categoria pelo resto da vida profissional, independentemente de que trabalho ela faça no dia a dia. É como se você contratasse alguém para ser “funcionário categoria A” e depois tentasse encaixar essa pessoa em qualquer função que precise ser feita. O salário, os direitos e as possibilidades de progressão estão todos amarrados a essa categoria legal, não ao trabalho real que a pessoa executa.
No modelo britânico (sistema de posições): Você define primeiro que trabalho precisa ser feito – “preciso de alguém para gerenciar sistemas de dados” – e depois contrata especificamente para essa função. Se a função muda ou não existe mais, você pode redefinir o cargo ou substituir a pessoa. O salário e a progressão estão ligados ao trabalho real, não a uma categoria abstrata.
A diferença prática é enorme. No Brasil, temos centenas de “carreiras” diferentes – cada uma com suas regras próprias, criadas ao longo de décadas por pressões corporativas específicas. Resultado: um emaranhado confuso onde o sistema se preocupa mais com o status legal do servidor do que com o trabalho que precisa ser feito.
Um exemplo concreto: imagine que você precisa contratar um especialista em inteligência artificial para o governo. No sistema britânico, você define essa posição, estabelece o perfil necessário, oferece salário compatível e contrata. No sistema brasileiro, você precisa primeiro descobrir em qual “carreira” essa pessoa se encaixaria, seguir as regras específicas dessa carreira (que provavelmente foram criadas décadas antes da IA existir), e torcer para que o salário pré-estabelecido dessa categoria seja atrativo.
Por que isso importa para tecnologia
Áreas técnicas como tecnologia da informação, dados e transformação digital mudam rapidamente. Novas especialidades surgem, outras se tornam obsoletas, e as habilidades necessárias estão em constante evolução.
O sistema de carreiras brasileiro é como tentar usar um mapa de 1990 para navegar em uma cidade que mudou completamente. As categorias foram criadas quando essas profissões nem existiam, e modificá-las é um processo lento e burocrático que envolve mudanças na lei, negociações corporativas e uma série de outros obstáculos.
Já o sistema de posições permite ajustes rápidos: surgiu uma nova necessidade técnica? Crie uma nova posição. Uma função se tornou obsoleta? Redefina o cargo. Precisa atrair talentos de ponta? Ajuste a remuneração para essa posição específica.
É importante não confundir as carreiras do Brasil com o que países como Reino Unido ou Austrália recentemente denominaram “profissões” no serviço público. Lá, profissões são simplesmente formas de organizar pessoas com habilidades similares (como todos os especialistas em tecnologia, ou todos os analistas financeiros) para facilitar treinamentos, desenvolvimento e troca de experiências. Mas isso não impede que essas pessoas sejam alocadas flexivelmente onde são necessárias, nem que seus salários sejam ajustados conforme a demanda específica de cada posição.
Até os “problemas” do Reino Unido seriam soluções para o Brasil
O que é marcante é como os desafios do Reino Unido destacam vantagens profundas sobre o Brasil. A lamentação britânica sobre “quase três anos” para preencher um cargo de Diretor-Chefe de Informação e Digital devido a remuneração não competitiva contrasta drasticamente com o Brasil, onde tais posições técnicas seniores carecem completamente de recrutamento transparente, aberto ou competitivo. Em vez disso, equivalentes brasileiros são tipicamente preenchidos por nomeações políticas opacas ou restritos a um pool diminuto de servidores de carreira via gratificações funcionais, com a própria posição frequentemente desprovida de identidade independente ou seleção transparente. Consequentemente, o mero conceito de recrutamento aberto e baseado em mérito para tecnólogos de alto nível, com remuneração clara, seria revolucionário para nosso sistema.
Similarmente, enquanto o marco GDaD do Reino Unido enfrenta críticas por adoção limitada ou aplicação inconsistente, ter mesmo um marco opcional e parcialmente implementado é infinitamente preferível à situação brasileira, onde não há mecanismo formal qualquer para reconhecer habilidades técnicas.
A preocupação do Reino Unido de que sua profissão de Tecnologia, Dados e Digital constitua apenas 4,8% do serviço público (contra uma meta de 6%) é outro exemplo revelador. No Brasil, há uma ausência completa de classificação formalizada transversal ao governo dessas funções, tornando impossível estabelecer metas, muito menos medir progresso.
O que o Brasil deveria aprender
A lição crucial para o Brasil não é simplesmente sobre adotar ferramentas específicas ou imitar estratégias salariais do Reino Unido. É reconhecer que nossa arquitetura fundacional de RH público – o sistema rígido e frequentemente incoerente de carreiras – torna muitas dessas discussões avançadas prematuramente inúteis.
É como tentar instalar um sistema de som sofisticado em um carro com motor fundido. Por mais avançada que seja a tecnologia, ela não vai funcionar se a base está comprometida.
Debater pontos refinados de remuneração competitiva para funções técnicas, por exemplo, contorna a realidade paralisante de que o sistema brasileiro frequentemente carece dos mecanismos básicos para propriamente definir, valorizar ou gerenciar essas posições em primeiro lugar.
Marcos como o GDaD do Reino Unido, embora sejam exemplos valiosos, primariamente destacam o dilema mais profundo do Brasil. Eles assumem um sistema subjacente que pode logicamente acomodar e apoiar tais abordagens focadas em posições e baseadas em habilidades. Tentar simplesmente sobrepô-los ao modelo atual brasileiro baseado em carreiras, sem abordar suas falhas inerentes, é como decorar um prédio condenado.
Esta deterioração fundamental também explica por que uma abordagem verdadeiramente flexível e orientada a resultados para RH permanece tão elusiva. Enquanto outros países podem debater as nuances entre diferentes políticas de RH, o Brasil está impedido porque seu sistema rígido inerentemente limita a autonomia dos órgãos e a capacidade dos RHs setoriais de serem julgados por resultados tangíveis, como construir capacidade técnica real.
O principal desafio do Brasil, então, não é simplesmente adotar novos “artefatos” de gestão de talentos ou se engajar em guerras de lances salariais (embora isso também seja necessário). Isso será infrutífero a menos que o país corajosamente confronte e reforme as fundações problemáticas do RH do setor público. E isso significa enfrentar os interesses consolidados que mantêm o sistema atual de carreiras, por mais disfuncional que seja.
Até que esta reforma fundamental seja empreendida, toda conversa sobre estratégias sofisticadas de gestão de talentos ou remuneração competitiva permanecerá uma distração, tratando sintomas superficiais enquanto a doença subjacente compromete a capacidade do governo brasileiro de construir as capacidades estatais que seus cidadãos desesperadamente precisam.