No México, o novo governo de López Obrador cancelou a reforma da educação do governo anterior, acusado de ter instituído um sistema punitivo de avaliação de mérito dos professores, e decidiu universalizar a educação superior, prometendo a criação de mais cem universidades. Ao mesmo tempo, corta os recursos e cria dificuldades para o funcionamento dos centros de pesquisa mais avançados. A educação pública mexicana é tão ruim quanto a brasileira e o poder dos sindicatos era tal que os professores das escolas públicas eram donos de seus cargos, podendo passá-los para os filhos. A Universidad Nacional Autónoma de México, com mais de 300 mil estudantes, sempre teve uma política de acesso livre e gratuito, gerando graves ineficiências, que os governos anteriores tentaram mitigar.
É um exemplo extremo de políticas populistas que dão prioridade absoluta às demandas da população por credenciais ou títulos universitários e aos interesses corporativos dos professores, deixando de lado as preocupações com qualidade e relevância. A consequência é a inflação dos diplomas, tornando necessários títulos cada vez mais altos para fazer as mesmas coisas, a um custo crescente para a sociedade.
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O Brasil nunca chegou a esse extremo, mas o que aconteceu com a educação teve muito dessa filosofia. E não é muito diferente do ocorrido em áreas como saúde e previdência: um grande esforço para recuperar séculos de atraso e compensar as desigualdades expandindo de qualquer maneira a educação, resultando num sistema inchado, custoso, de má qualidade e extremamente difícil de reformar. Hoje, 50 milhões de brasileiros estão matriculados em algum tipo de escola, 60% da população até 30 anos, atendidos por um exército de mais de 6 milhões de pessoas, entre professores, dirigentes escolares, funcionários e outros profissionais. A estimativa mais recente de é que o Brasil gasta perto de 8% do PIB em educação, incluindo os gastos privados, proporcionalmente mais do que todos os demais países da América Latina e muitos países desenvolvidos.
Uma justificativa para esse grande esforço é que a educação seria a principal alavanca para sair da armadilha da renda média, em que estamos atolados. De fato, as pessoas mais educadas ganham mais, supostamente porque têm competências que o mercado de trabalho valoriza, e países em que a população é mais educada são mais desenvolvidos. No entanto, no Brasil a produtividade manteve-se estagnada ao longo das últimas décadas. Uma das razões é que a educação cresceu dando prioridade às demandas por credenciais – diplomas – e às reivindicações corporativas do setor, em detrimento da ênfase no mérito e nas competências. Como vários estudos recentes têm demonstrado, não basta aumentar a escolaridade para que a produtividade aumente. É preciso que a educação seja de qualidade, o que não tem ocorrido de forma satisfatória.
A outra justificativa é que a educação aumenta a mobilidade e reduz a desigualdade social. Mas nem sempre mais educação leva a esses resultados. Em quase todo o mundo, ao longo do século 20, houve um grande crescimento das cidades, da economia e do setor público. A expansão da educação, que acompanhou esses processos, fez com que as elites tradicionais se modernizassem e pessoas mais pobres, imigrantes e de minorias, se beneficiassem das novas oportunidades que foram sendo criadas. A insistência no mérito como critério para acesso às novas oportunidades de estudo e avanço nas carreiras foi fundamental para garantir que as melhores posições não fossem monopolizadas pelas elites tradicionais.
Mas não foi uma vitória absoluta. Existe uma forte relação, difícil de ser superada, entre desempenho escolar e origem social; e, além disto, a educação é um bem “posicional”, ou seja, os benefícios de cada um dependem em grande parte da posição relativa que ele tenha em relação aos demais. Como no futebol, só há lugar para poucos na primeira divisão.
Quando o processo de urbanização se esgota, os custos do sistema de bem-estar social chegam a seu limite e a economia para de crescer, como no Brasil de hoje, a expansão da educação deixa de ser um jogo em que todos ganham, ainda que desigualmente, e se aproxima de um jogo de soma zero, em que os que ganham o fazem à custa dos ficam para trás.
Isso leva a conflitos intensos pelas credenciais acadêmicas, numa combinação perversa de reservas de mercado profissional para os mais educados e políticas populistas de estímulo ao acesso livre ou facilitado ao ensino superior. Por um lado, o acesso ao ensino superior passa a ser visto como direito de todos, os requisitos mais tradicionais de desempenho no acesso e nos estudos passam a ser substituídos por critérios sociais, e a conquista dos diplomas passa a ter precedência sobre o desenvolvimento de competências. Por outro, cada vez mais é preciso uma pós-graduação ou passar num concurso público extenuante para conseguir um bom emprego, e milhares de formados em Direito nunca passarão o exame da OAB. Milhões se inscrevem no Enem tentando chegar ao ensino superior e não conseguem, muitos dos que entram abandonam antes de terminar e grande parte dos formados acaba trabalhando em atividades de nível médio.
A solução não é voltar o relógio do tempo, restringindo o acesso ao ensino superior e controlando mais rigidamente o exercício das profissões universitárias, mas, ao contrário, é criar mais alternativas de formação de nível médio e superior para atender a pessoas de diferentes perfis, reduzindo a pressão sobre os títulos acadêmicos, e quebrar os monopólios profissionais que excluem arbitrariamente pessoas com níveis de formação diferenciados do mercado de trabalho.
A âncora da educação devem ser as competências, e não os diplomas que possam aparecer nos currículos.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 11/10/2019