Às vezes, um homem vale mais que um parlamento inteiro. Não me refiro aqui a estadistas como Churchill, cujo exemplo transcendeu as fronteiras britânicas e adentrou, com seu gênio, talento e coragem, no panteão sagrado dos heróis que salvaram a humanidade dos seus piores dias. No caso, estou a me referir a homens como John Marshall que, em 1802, descortinou magistralmente a teoria da inconstitucionalidade das leis e dos atos de governo. A inteligência luminosa do notável “chief justice” americano revelou, através de encantadora equação argumentativa, o latente princípio da supremacia da Constituição, outorgando ao Judiciário a responsabilidade política de controlar juridicamente a discricionariedade dos poderes eletivos.
A decisão de Marshall, ancorada no espírito superior dos “founding fathers”, causou uma autêntica revolução na estrutura política americana. Plenamente ciente de que a teoria da inconstitucionalidade representava uma limitação institucional aos desideratos pessoais e passageiros do poder, Jefferson não hesitou em contrapor a linha hermenêutica adotada pela Corte e, em especial, pela liderança de Marshall. Como forma de estancar a ação construtiva do Judiciário e intimidar seus dignos juízes, houve a proposição de processo de impeachment contra o justice Chase. Após pressões de todas as formas e pela resistência briosa dos grandes advogados da época, a manobra hostil contra a Suprema Corte não encontrou agasalho na maioria do Senado. Posteriormente, o grande Oliver W. Holmes, com galhardia e destemor, soube, como poucos, se colocar independentemente frente a Roosevelt. E mais recentemente foi a vez de Earl Warren enfrentar dura resistência de Eisenhower por suas decisões tidas por demais progressistas.
Como se vê, a função das supremas Cortes não é a de agradar o poder, até mesmo porque tal agrado pode vir a degradá-lo. Por assim ser, o juiz constitucional não é político, embora possua uma extraordinária força política. Na verdade, o conteúdo normativo da Constituição é povoado por uma simbiótica tensão entre o plano ideal da regra jurídica com o aspecto possível e pragmático da realidade política. Consequentemente, a sublime realização do direito constitucional pressupõe um casamento harmônico entre a ordem normativa com a vontade da política. Quando a lei deixa de ter eco na prática é sinal de que os desejos políticos se divorciaram dos fins maiores para os quais foram traçados. E, para corrigir o curso dos descaminhos da política, é necessário aquilo que o justice Harlan, certa vez, chamou de “tremendous power”, o poder de levar luz à escuridão da inconstitucionalidade.
Todavia, é preciso lembrar que uma tela só se transforma em arte quando preenchida pela destreza artística do pincel. E, quanto maior o talento do pintor, mais nobre é a grandeza de sua obra. O mesmo efeito se dá com a arte de interpretar a Constituição: quanto maior for a competência hermenêutica do intérprete, mais amplo será o potencial normativo das regras e princípios constitucionais. Em outras palavras, quanto maior o talento do juiz, mais bela será a obra constitucional de uma nação.
Nesse contexto, é imperativo e necessário que a escolha dos integrantes da Corte recaia em personalidades superiores que, por suas vivências, erros, acertos, sucessos e insucessos, tenham forjado, ao longo do tempo, um espírito forte e capaz de vestir com desambição e impessoalidade a toga intemerata da suprema magistratura. Em discurso proferido em 28 de janeiro de 1926, quando da posse de Herculano de Freitas no Supremo Tribunal Federal, o grande João Mangabeira, homem de tantas lutas e de inquebrantável fibra de caráter, asseverou, com sua maestria de jurista, que “nestes tribunais supremos, não raro se devem aliar num julgamento o critério do juiz com a visão do estadista, a lógica do magistrado com o descortino do político”, vindo a concluir frase lapidar: “A Constituição não pode ser interpretada ou construída como um obstáculo à felicidade coletiva.” Portanto, a interpretação constitucional não se restringe a um silogismo matemático, frio e calculado; ao contrário, a extração do sentido normativo da Constituição exige uma conexão entre a tecnicidade da norma com o sentimento ideal de justiça, otimizando, através de uma argumentação plausível e motivada, os sentidos jurídico-políticos das disposições constitucionais.
Por tudo, é possível dizer que uma das mais importantes funções políticas da suprema magistratura é manter vivo e candente o poder normativo da Constituição. A lei, como sabido, não é pedra nem cinzas; é vida. E, para viver, a legalidade precisa ser diariamente preservada com o cuidado e energia das flores. Bem sabia disso o inigualável Pedro Lessa, aquele que foi considerado por Rui como o Marshall brasileiro; em suas notáveis decisões, que ainda cintilam no céu do Supremo, Lessa foi um juiz absolutamente extraordinário, um homem que, no abalizado dizer de João Luiz Alves, deu “alma à Constituição”. Aliás, uma Constituição sem alma não passa de uma oração sem fé. Ou seria uma arte sem cores?
Fonte: Valor Econômico, 27/07/2012
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