Por interesse cívico, com o coração aos pulos, assisti praticamente todos os votos, inclusive os mais longos, através dos quais nossos ministros do STF decidiram sobre o futuro da reserva Raposa/Serra do Sol. Na medida em que se revelava majoritária a opção pela demarcação contínua das terras, o meu interesse cívico foi sendo substituído por um sentimento de luto que conflitava com a pieguice das manifestações. Aquilo era puro romantismo de má qualidade. José de Alencar fazia muito melhor. E mais barato.
Em meio a tal deserto de senso histórico e vácuo de realismo, o voto do ministro Marco Aurélio Melo foi um oásis. Seu longo trabalho, esparramando argumentos sobre a natureza dos fatos e sobre os elementos jurídicos a eles aplicáveis, foi tão consistente e extenso quanto inútil. Mas o ministro, embora ciente de sua esterilidade, não titubeou em produzir o imenso arrazoado para desnudar os equívocos e os lirismos que caracterizaram a maior parte das manifestações anteriores. Entre elas, obviamente, a contida no voto do relator, o aveludado filho das Musas sergipanas, ministro Ayres Britto.
Assim, com um desalento conformado, presenciei os momentos finais da sessão. Pois foi exatamente quando se iam apagar as luzes que um derradeiro episódio reacendeu os holofotes, favorecendo a compreensão do que ocorrera naqueles sucessivos dias de deliberação. Discutia-se a execução do que fora decidido. Em quanto tempo promover a retirada dos não-índios? (Não-índios integravam uma categoria antropológica muito mal vista por ali). Em quanto tempo? Entreolharam-se os senhores ministros. Aproximaram-se inutilmente do pelourinho de onde podiam arfar seus argumentos os advogados dos não-índios. Queriam prazo. A decisão veio consensual: “a Corte não dá prazos”. Emite determinações para execução imediata. Ela, a Corte, não esquenta a cuca com o que acontece na ponta dos fatos a partir de suas decisões. São mesquinharias que causam enfado à Corte. Vamos para casa tomar um uísque.
Lá no norte do país, cidadãos brasileiros recebiam pela tevê, viva voz e viva imagem, a notícia da expulsão imediata, emitida entre bocejos pelos senhores da Corte. Ao lixo os títulos de propriedade legítimos e os longos anos de árduo trabalho familiar nas terras que a União lhes vendeu. Ao lixo suas lavouras plantadas e seus rebanhos no pasto. Ponham-se na rua, todos, com suas famílias, moradias, máquinas e bens! A Corte decidiu e a Corte, visivelmente, está cansada. Isso é que é trabalho duro. Moleza é plantar arroz no trópico e discutir antropologia com padres que não evangelizam os índios e que desevangelizam os não-índios.
Pois foi exatamente então que se acenderam os holofotes para a minha compreensão sobre o que acabava de acontecer. Foi a Corte. Corte é assim mesmo. O que ela menos quer é contato com a arraia miúda e seus problemas. A decisão do STF sobre a demarcação contínua da reserva Raposa/Serra do Sol e a retirada imediata dos não-índios é apenas uma outra face do mesmo problema cortesão que, no Senado, concebeu hora-extra nas férias e criou quase duas centenas de diretorias, e que, na Presidência da República, duplicou, em dois meses, o valor das despesas sigilosas nos cartões de crédito corporativo. E comam brioche.
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